Aconteceu a manhã no
declive do novo dia. Os lençóis remexidos de mais uma viagem por terras de
geografias agudas, emoções descontinuadas onde a memória se alberga e desliga
nas montanhas por onde regressei. Sonhos inúteis onde viver é ser um outro, e
sentir só é possível se esse ontem da vida não se perder na neblina da
indecisão. A espada do anjo silenciou as vozes carpideiras, e eis que me senti
um emigrante no lado incorreto da vertigem e o silêncio voltou a sombrear o
quarto onde aconteci. As portas fecharam-se, pertenço a esta terra natural,
aconteço visivelmente indefinido e avanço um eu sem importância nenhuma, um
nada que terá de morrer outra vez, e que demora a compreender a razão desse
mistério, tal como os outros que também somos, desalinhados e sedentos. É assim
que nos acabamos por derrotar, com uma multidão absurda e inerte a olhar para
nós, pedintes que tudo perderam, tão iguais ao que somos, persistentes e
expectantes. A música serve apenas para reatar a esperança que sempre coloco na
vida e nas horas que são dos homens, ligadas por um entendimento forasteiro que
escurece as águas onde nos banhamos. Esta é a alegria, já a senti num outro dia
com paisagens menos futuristas, mas este domingo monótono antecipou-me a
verdade trajada desta maneira, e agora, que é noite escura, o mais provável é
acabar o dia a ver um qualquer filme de ação com argumento futurista ou
surreal, prisioneiro do sofá merecido e pouco confortável. Entrei diretamente
para o passado, esperava nele entrar menos despido, mas o universo, na sua
gigantesca sabedoria, não me permitiu a veleidade. O sossego do meu domingo
ficou desmanchado mal acordei. Os diálogos, assim que os iniciei,
despertaram-me para o dia sinistro. Juro que só agora acordei, mas são já dez
da noite, não da manhã, e numa hora como esta, o pensamento derrapa para o
interior do argumento despropositadamente não literário do filme que imagino
ver. Sinto-me agora próximo da extensão oculta de mim, e alguém ficou de me
informar melhor acerca de quem sou e o que faço aqui, ainda que me minta e eu
consiga evadir-me da paisagem que desenharam para este mundo onde poucos
habitam. Esta estação está vazia, fugiu na direção contrária ao tempo que a
ajudou a construir, e eu esperei em vão pelo lento cair da noite e a saudade
chegou, alastrou-se mentirosa e negra, pousou depois nesse vislumbre longínquo
do cansaço com que hoje me levantei. Os pormenores do mundo estavam desfocados
e assim ficaram durante todo o dia, até agora, e a melodia ainda toca,
baixinho, e eu tenho sono e cansaço, e o sol desceu e escondeu os pensamentos
deste mundo. O que me vale é que ainda consigo escutar a minha respiração e sei
pronunciar o meu nome, e vejo e penso, mesmo se com os olhos fechados, observo
este negrume falso que cobre o universo inteiro e eu nunca te deixarei
imaginá-lo de outra maneira. O luar é branco, a lua não mente e com a sua luz
afaga as pedras das calçadas que pisamos com a mesma cor azulada de sempre, e
as janelas abrem-se para nos ver a erguer da cama para mais um domingo plácido
e desequilibrado. Talvez tivesse sido melhor ter ficado o resto do dia quieto
na cama a descansar, acordava só agora e, cansado, renascia na cama para
assistir ao raiar de um domingo novo e diferente. Tenho uma leve esperança que
isso ainda possa acontecer, antes dos malditos segundos que restam dele nos
roubarem este dia para sempre, mais vale pensar e sentir este sono que ocupa o lugar
inteiro destas últimas páginas labirínticas que me ajudam a sobreviver, como se
não tivesse dormido. É de uma bebedeira sem fim este não ser nem sentir nada, o
mundo todo avariado rasga-se em dois pedaços fedorentos que deixam claramente
de existir e o portal entre universos abre-se. Rodo a cabeça, quero acreditar
no que vejo e bato com os pés descalços incessantemente no chão molhado que
sinto dentro dos sapatos. Há um aperto constante no interior da minha cabeça,
atrás, junto à nuca, e rodo os olhos em todas as direções antes de nele entrar.
A imagem que se forma são todos os lares que conheci, os seus arredores… lá
dentro não sinto mais nada, só a impossibilidade de dormir, e uma rua que fica
longe e para onde me dirijo. Uma porta fechada pede-me para entrar, e eu
obedeço, leve, e fico com as mãos manchadas de sangue ao rodar a maçaneta
branca e falsa que quase me aniquilou a esperança que tenho tido em conseguir,
de novo, voltar a adormecer.
Está a fazer-se tarde,
as horas não perdoam, alinhavam a paisagem onde irei meditar a névoa quente
deste meu propósito. O que está lá fora e ali em cima é a esperança de um resto
de domingo de sossego feito para meditar.
O sonho é apenas este
labirinto onde acontecemos!
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