segunda-feira, 3 de outubro de 2016

19 - LABIRINTO



Aconteceu a manhã no declive do novo dia. Os lençóis remexidos de mais uma viagem por terras de geografias agudas, emoções descontinuadas onde a memória se alberga e desliga nas montanhas por onde regressei. Sonhos inúteis onde viver é ser um outro, e sentir só é possível se esse ontem da vida não se perder na neblina da indecisão. A espada do anjo silenciou as vozes carpideiras, e eis que me senti um emigrante no lado incorreto da vertigem e o silêncio voltou a sombrear o quarto onde aconteci. As portas fecharam-se, pertenço a esta terra natural, aconteço visivelmente indefinido e avanço um eu sem importância nenhuma, um nada que terá de morrer outra vez, e que demora a compreender a razão desse mistério, tal como os outros que também somos, desalinhados e sedentos. É assim que nos acabamos por derrotar, com uma multidão absurda e inerte a olhar para nós, pedintes que tudo perderam, tão iguais ao que somos, persistentes e expectantes. A música serve apenas para reatar a esperança que sempre coloco na vida e nas horas que são dos homens, ligadas por um entendimento forasteiro que escurece as águas onde nos banhamos. Esta é a alegria, já a senti num outro dia com paisagens menos futuristas, mas este domingo monótono antecipou-me a verdade trajada desta maneira, e agora, que é noite escura, o mais provável é acabar o dia a ver um qualquer filme de ação com argumento futurista ou surreal, prisioneiro do sofá merecido e pouco confortável. Entrei diretamente para o passado, esperava nele entrar menos despido, mas o universo, na sua gigantesca sabedoria, não me permitiu a veleidade. O sossego do meu domingo ficou desmanchado mal acordei. Os diálogos, assim que os iniciei, despertaram-me para o dia sinistro. Juro que só agora acordei, mas são já dez da noite, não da manhã, e numa hora como esta, o pensamento derrapa para o interior do argumento despropositadamente não literário do filme que imagino ver. Sinto-me agora próximo da extensão oculta de mim, e alguém ficou de me informar melhor acerca de quem sou e o que faço aqui, ainda que me minta e eu consiga evadir-me da paisagem que desenharam para este mundo onde poucos habitam. Esta estação está vazia, fugiu na direção contrária ao tempo que a ajudou a construir, e eu esperei em vão pelo lento cair da noite e a saudade chegou, alastrou-se mentirosa e negra, pousou depois nesse vislumbre longínquo do cansaço com que hoje me levantei. Os pormenores do mundo estavam desfocados e assim ficaram durante todo o dia, até agora, e a melodia ainda toca, baixinho, e eu tenho sono e cansaço, e o sol desceu e escondeu os pensamentos deste mundo. O que me vale é que ainda consigo escutar a minha respiração e sei pronunciar o meu nome, e vejo e penso, mesmo se com os olhos fechados, observo este negrume falso que cobre o universo inteiro e eu nunca te deixarei imaginá-lo de outra maneira. O luar é branco, a lua não mente e com a sua luz afaga as pedras das calçadas que pisamos com a mesma cor azulada de sempre, e as janelas abrem-se para nos ver a erguer da cama para mais um domingo plácido e desequilibrado. Talvez tivesse sido melhor ter ficado o resto do dia quieto na cama a descansar, acordava só agora e, cansado, renascia na cama para assistir ao raiar de um domingo novo e diferente. Tenho uma leve esperança que isso ainda possa acontecer, antes dos malditos segundos que restam dele nos roubarem este dia para sempre, mais vale pensar e sentir este sono que ocupa o lugar inteiro destas últimas páginas labirínticas que me ajudam a sobreviver, como se não tivesse dormido. É de uma bebedeira sem fim este não ser nem sentir nada, o mundo todo avariado rasga-se em dois pedaços fedorentos que deixam claramente de existir e o portal entre universos abre-se. Rodo a cabeça, quero acreditar no que vejo e bato com os pés descalços incessantemente no chão molhado que sinto dentro dos sapatos. Há um aperto constante no interior da minha cabeça, atrás, junto à nuca, e rodo os olhos em todas as direções antes de nele entrar. A imagem que se forma são todos os lares que conheci, os seus arredores… lá dentro não sinto mais nada, só a impossibilidade de dormir, e uma rua que fica longe e para onde me dirijo. Uma porta fechada pede-me para entrar, e eu obedeço, leve, e fico com as mãos manchadas de sangue ao rodar a maçaneta branca e falsa que quase me aniquilou a esperança que tenho tido em conseguir, de novo, voltar a adormecer.
Está a fazer-se tarde, as horas não perdoam, alinhavam a paisagem onde irei meditar a névoa quente deste meu propósito. O que está lá fora e ali em cima é a esperança de um resto de domingo de sossego feito para meditar.
O sonho é apenas este labirinto onde acontecemos! 

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