A ilusão preciosa
atinge a superfície da terra naquele preciso ponto e lugar onde a humanidade já
não tem solução. Somos uma espécie em vias de extinção, e turvamos
sistematicamente as teorias Darwinianas com sombras e pesadelos. A evolução do
ser humano é puramente metafísica, é um eterno combate contra a sua constante e
gritante desumanidade.
As notícias
encharcam-nos com informações desconfortáveis de violência extrema e crueldade
desmesurada que confirmam a nossa estupidez. Os noticiários afirmam, com
clareza, que somos uma espécie mentirosa e sem solução, uma espécie que procura
a ruína, se entretém a modificar os outros, a moldar os outros, a combater
pretensos inimigos, a reformar o irreformável e a causar um permanente estado
de irrequietude, medo e destruição.
Que emendas ou remendos
conseguirão reformar o homem se reformar é não ter emenda possível? Isso mesmo
o Mago afirmou. O homem não se entende, diz-se preocupado com o mal e a
injustiça do mundo, mas a que mundo pertence, e de que males fala se cada
indivíduo transporta em si diferentes conceções para uma mesma realidade? O
mundo de cada ser humano não se pode partilhar e dificilmente se modificará, é
um universo irrepetível e transcendente de paisagens íntimas e revolucionárias
em permanente convulsão.
Não somos uma espécie
bondosa ou caritativa ou delicada ou poética ou evoluída, somos semelhantes à
mesma lama que desaprovamos, somos sacristãos a quem nada importa desde que o
desprezo que nutrimos uns pelos outros regresse à alma grosseira e anárquica de
onde brotou. Não nos interessam as guerras longínquas, as crises alheias, as
mortes de quem não conhecemos, o sofrimento de quem nada nos diz. De verdade,
não nos interessa subir ou descer, avançar ou recuar, pois nascemos decadentes
e loucos, alienados, aristocratas, burgueses, miseráveis, pobres, anarquistas,
grosseiros, guerreiros, nómadas, sedentários, inaptos, amorais…
Todo o pensamento é
expresso por palavras invisíveis cada vez mais degradadas e deploráveis. Não é
possível adjetivar a estupidez do homem, não é de todo possível compreendê-lo
por não existirem palavras capazes de tornar compreensíveis as razões que
fundamentam a humana condição.
Somos uma espécie
inadaptada em vias de extinção, praticante de rituais ocultos dos quais
reencarnamos ainda mais degradados do que em vidas anteriores. A maldade é a
própria ironia com que nos vestimos, é orgânica e endémica, e opera por debaixo
das mais finas camadas da pele, quase à superfície. Dormimos com a maleficência
a passar ao nosso lado, a laçar a vida dos outros num ritmo feroz, tão
repugnantes, tão contentes e alheios e solenes, plenos de perpétuo
esvaziamento. Sentimos o quotidiano a esvair-se em sangue, lá longe, e negamos
esta realidade dos factos que desejamos sempre omissa. Outro é o nosso jardim,
é sempre um outro enquanto nele nasça uma flor ou um fruto. Lá em baixo, lá bem
ao fundo, sei lá dos jardins dos outros e das suas flores e de seus frutos,
quero lá saber se moram em barracas, ao relento, se passam fome ou as estrelas
os escolheram para sofrerem o derradeiro castigo de maneiras indizíveis. O homem
medita através de uma física adulterada, e julga que vive uma vida distinta da
dos outros animais. Despertaremos quando morrermos numa fria tarde de inverno,
num dia tristonho que nunca existirá. O homem é o vigilante supremo, é o espião
máximo, é o mais repelente dos seres à face da Terra.
Somos o animal que
julgamos não existir.
Vi, e não queria
acreditar, vi o maior de todos os fingimentos egoístas, mas talvez estivesse
embriagado, talvez fosse mentira.
Estava sóbrio, e fui-me
embebedar.
Escuta, ouve esta
doença a cavalgar pela atmosfera como um trovão a atravessar-se no meio do
caminho, a esmagar o resto das partes atomizadas que restam desta humanidade
que já não nos pertence.
Que negócios são estes
que nos derrotam à priori, criados por homens que se esqueceram por completo da
generalidade da vida. Feitos os seus “negócios”, sentam-se nas poltronas a
fumar os charutos e a sentirem-se todo-poderosos sem compreender a miserável
condição que estenderam à escala global. Os que mandam riem-se no topo dos seus
templos de cristal, os que mandam fazem o que querem sem nunca sentir, os que
mandam consideram-se homens de ação, e espezinham a humanidade amorfa e frágil
que se entretêm a escravizar. Contemplam o espetáculo dantesco deste mundo, a
confusão grandiosa de impérios e culturas, e deliciam-se com o cheiro a novo,
um cheiro que dura menos que um pequeno instante, pois existem milhares de
novos “negócios” para tratar. Um Natal feito de escravatura é a lei da vida, e
não há outra lei…
A afirmação suprema de
todos os propósitos reside na abdicação estática do Buda, e tal como o Mago
afirmou, este mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos
míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.