segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

44 - NATAL





 A ilusão preciosa atinge a superfície da terra naquele preciso ponto e lugar onde a humanidade já não tem solução. Somos uma espécie em vias de extinção, e turvamos sistematicamente as teorias Darwinianas com sombras e pesadelos. A evolução do ser humano é puramente metafísica, é um eterno combate contra a sua constante e gritante desumanidade.
As notícias encharcam-nos com informações desconfortáveis de violência extrema e crueldade desmesurada que confirmam a nossa estupidez. Os noticiários afirmam, com clareza, que somos uma espécie mentirosa e sem solução, uma espécie que procura a ruína, se entretém a modificar os outros, a moldar os outros, a combater pretensos inimigos, a reformar o irreformável e a causar um permanente estado de irrequietude, medo e destruição.
Que emendas ou remendos conseguirão reformar o homem se reformar é não ter emenda possível? Isso mesmo o Mago afirmou. O homem não se entende, diz-se preocupado com o mal e a injustiça do mundo, mas a que mundo pertence, e de que males fala se cada indivíduo transporta em si diferentes conceções para uma mesma realidade? O mundo de cada ser humano não se pode partilhar e dificilmente se modificará, é um universo irrepetível e transcendente de paisagens íntimas e revolucionárias em permanente convulsão.
Não somos uma espécie bondosa ou caritativa ou delicada ou poética ou evoluída, somos semelhantes à mesma lama que desaprovamos, somos sacristãos a quem nada importa desde que o desprezo que nutrimos uns pelos outros regresse à alma grosseira e anárquica de onde brotou. Não nos interessam as guerras longínquas, as crises alheias, as mortes de quem não conhecemos, o sofrimento de quem nada nos diz. De verdade, não nos interessa subir ou descer, avançar ou recuar, pois nascemos decadentes e loucos, alienados, aristocratas, burgueses, miseráveis, pobres, anarquistas, grosseiros, guerreiros, nómadas, sedentários, inaptos, amorais…
Todo o pensamento é expresso por palavras invisíveis cada vez mais degradadas e deploráveis. Não é possível adjetivar a estupidez do homem, não é de todo possível compreendê-lo por não existirem palavras capazes de tornar compreensíveis as razões que fundamentam a humana condição.
Somos uma espécie inadaptada em vias de extinção, praticante de rituais ocultos dos quais reencarnamos ainda mais degradados do que em vidas anteriores. A maldade é a própria ironia com que nos vestimos, é orgânica e endémica, e opera por debaixo das mais finas camadas da pele, quase à superfície. Dormimos com a maleficência a passar ao nosso lado, a laçar a vida dos outros num ritmo feroz, tão repugnantes, tão contentes e alheios e solenes, plenos de perpétuo esvaziamento. Sentimos o quotidiano a esvair-se em sangue, lá longe, e negamos esta realidade dos factos que desejamos sempre omissa. Outro é o nosso jardim, é sempre um outro enquanto nele nasça uma flor ou um fruto. Lá em baixo, lá bem ao fundo, sei lá dos jardins dos outros e das suas flores e de seus frutos, quero lá saber se moram em barracas, ao relento, se passam fome ou as estrelas os escolheram para sofrerem o derradeiro castigo de maneiras indizíveis. O homem medita através de uma física adulterada, e julga que vive uma vida distinta da dos outros animais. Despertaremos quando morrermos numa fria tarde de inverno, num dia tristonho que nunca existirá. O homem é o vigilante supremo, é o espião máximo, é o mais repelente dos seres à face da Terra.
Somos o animal que julgamos não existir.
Vi, e não queria acreditar, vi o maior de todos os fingimentos egoístas, mas talvez estivesse embriagado, talvez fosse mentira.
Estava sóbrio, e fui-me embebedar.
Escuta, ouve esta doença a cavalgar pela atmosfera como um trovão a atravessar-se no meio do caminho, a esmagar o resto das partes atomizadas que restam desta humanidade que já não nos pertence.
Que negócios são estes que nos derrotam à priori, criados por homens que se esqueceram por completo da generalidade da vida. Feitos os seus “negócios”, sentam-se nas poltronas a fumar os charutos e a sentirem-se todo-poderosos sem compreender a miserável condição que estenderam à escala global. Os que mandam riem-se no topo dos seus templos de cristal, os que mandam fazem o que querem sem nunca sentir, os que mandam consideram-se homens de ação, e espezinham a humanidade amorfa e frágil que se entretêm a escravizar. Contemplam o espetáculo dantesco deste mundo, a confusão grandiosa de impérios e culturas, e deliciam-se com o cheiro a novo, um cheiro que dura menos que um pequeno instante, pois existem milhares de novos “negócios” para tratar. Um Natal feito de escravatura é a lei da vida, e não há outra lei…
A afirmação suprema de todos os propósitos reside na abdicação estática do Buda, e tal como o Mago afirmou, este mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

43 - CÃES ENTRE GATOS



A humanidade devia ser um vasto império de canina ou felina felicidade, sem almas despedaçadas por ideais deploráveis, ou deuses imperfeitos de incomparáveis dimensões.
Ocorre-me que os gatos e os cães conseguem viver vidas com uma grande satisfação simplesmente por não praticarem guerras horrendas e cruéis onde grassa a estupidez.
Um gato sabe como se perder na contemplação profícua das coisas inúteis. Um cão sabe praticar, de maneira sábia, o repouso tranquilo e dolente. Estende o corpo naquele exato lugar onde o sol morno lhe aconchega a indiferença e a paz chega de todos os lugares.
O mundo sem desaires nem desastres, sem pesadelos, sem esquerdos ou direitos, sem pretos ou brancos, sem sofrimentos ou devaneios opressores. Gatos e cães estão felizes no lugar onde a brisa sopra, as árvores dão sombra, o sol brilha e o coração pode bater sem sobressalto. Sem ciência nem religião, os dias passam serenos neste vasto império onde gatos e cães sonham antes de adormecer. Sonham apenas pelo prazer de sonhar, pelo consolo da inação retemperadora, são reis e imperadores desse mundo sem tronos nem coroas, sem dinheiro ou ostentação, e até o devaneio e a loucura se mantêm afastados desse lugar pois não o compreendem.
A natureza destes bichos é mesmo assim, construída por uma sabedoria onde as teorias da conspiração não fazem sentido, onde a política não tem lugar, onde o dinheiro não se fabrica, e onde a lisura reina. Se um cão ladra, é porque o ato constitui a sua força, e ele sente-se bem ao expressar assim a sua presença. Um gato passa ao seu lado, estendendo o corpo listrado de animal inteligente e poderoso, sem lhe dar trela. Não se deixa afetar pelos latidos pois só vê o que lhe interessa, e ruma rapidamente para a sua própria ordem das coisas. Enrola-se em torno de si mesmo após ter dado duas voltas circulares ao espaço que passou a habitar. Aconchega a cabeça por debaixo das patas, e tapa o focinho com a cauda em movimentos muito lentos, cadenciados e precisos. Um relojoeiro suíço seria incapaz de reproduzir a beleza e elegância do mecanismo interno que acionou o movimento do animal. Sem lapsos, o felino ajustou o seu mundo à humanidade que só ele entende e onde existe uma razão para tudo.
Não é por acaso que os gatos também sonham, e não é por acaso que os cães sonham também. Seria um erro julgar que não o fazem ou que neles não existe uma humanidade bem mais grandiosa que a nossa. Sonham a existência do Infinito e a bondade de um Criador, sonham sofismas sem preconceitos, sonham com distinção, sonham sonhos burgueses, é isso que os caracteriza, pois nada há de mais burguês que uma humanidade canina e felina a dormitar languidamente num virtuosismo sem igual.
Fico consolado ao imaginar uma humanidade assim, consolo-me na sombra desta tarde e sento-me, glorioso, a apanhar banhos de sol outonal onde mais nenhum felino veio descansar. Lambo as patas com prazer, passo-as por detrás das orelhas e por sobre o focinho, sinto-me mais do que o rei deste lugar, e uma glória ímpar protege os pelos do meu corpo listrado.
- Miauuuuu!
Um cão passa a ladrar lá longe, já meio indefinido. O vadio que é mais Imperador e Poeta que todos os homens, volta a ladrar na sombra que o esconde junto à serrania onde mora.
- Ão Ão Ão!
As vidas humanas não podem fazer parte desta equação, nesta humanidade canina e felina só os animais podem manter a lei profunda que rege a lógica do lugar.
Se o macaco aqui chegar, o melhor mesmo é assustá-lo com miados, urros e latidos, e esperar que isso seja o suficiente para evitar que o símio possa evoluir até ser capaz de reger a orquestra que se encarregará da sua própria destruição.
Só me voltarei a erguer depois de uma sesta retemperadora. Depois, a lua grande elucidar-me-á e eu saberei o que fazer a seguir…

domingo, 18 de dezembro de 2016

42 - MAGO, PORQUE NÃO SORRIS?



Tecer, bordar o tecido da obra é toda a distração que procuro, o único vício onde passei a apreciar melhor as cores, os sons e as formas delicadas dos recantos da minha estalagem. A minha religião passou a ser esta literatura em que nos perdemos como um barco a navegar o prólogo de um futuro ameaçado.
Todo o sofrimento é solitário neste rio superior onde passa a vida, mas nada se compara ao amor que se sente, não correspondido. É a dor suprema, o cabo das tormentas intransponível, o verdadeiro Adamastor Camoniano.
O nosso relógio antigo mostra aquele que fomos na infância, criança com medo até de adormecer. O passado faz-me frio, devolve mistérios transcendentes e choro na noite como esse menino com medo que outrora fui. Que catraio saltava e corria nos telhados quebradiços das casas da aldeia? Essas coisas foram também realidade, e eu tive-as, e já não tenho, nem as memórias que perdi sem acreditar nelas, sem saber se as vivi numa outra lua qualquer, e experimento agora o vício solitário desta arte que me distrai e dissimula.
Raciocino, melhor seria não raciocinar, mas eu estou a refletir e as horas passam mais lentas nestes diálogos que gostaria de ter tido contigo. Mago, tu que escutas melhor do que ninguém, fala comigo, diz-me qualquer coisa simbólica que me ajude a acreditar. 
- Pois sim. – dizes-me tu – Pois sim, mas para que te serve o raciocínio se é a pior espécie de sonho? Continua dormindo…
Vou até lá fora cheirar a manhã. É quase meio-dia e nada ainda aconteceu. Apenas o gato a deambular pela casa, a pedir comida, a pedir afagos, a ser gato dolente que se enrola perto do fogão de lenha onde o tacho já ferve. Vou até lá fora esticar as pernas e cheirar a manhã. Andar faz-nos regressar quase inteiros a lugares da nossa vida que subitamente revivemos.
Mais uma vez recebo com lágrimas nos olhos as reanimações do passado, e misturam-se na boca sabores distintos a cada passo meu. Fico mais consciente desses outros por quem já passei, etéreos e afastados e passados, atores em cenários de outros séculos a quem emprestei malícias e cansaços. Primeiro foi a parte mais medieval de quem já fui a regressar à memória, depois a parte mais barroca e menos inevitavelmente perdida, mais tarde a parte de mim que encarou os primeiros anos do século vinte, depois a que sofreu o embate da segunda grande guerra, depois aquela que eu sou agora, a que julga que por tantas memórias passadas revisitadas talvez nunca estejamos mortos, nada disto seja a morte, apenas uma vida feita de sonhos, com prelúdios de atividades que nos confessam esta contínua imersão num mar carregado de ondas sombrias, um mar agitado onde o próprio viver já será morrer, como o Mago dizia.
Somos os povoadores de nossos sonhos.
Talvez seja um absurdo relatar esta série de sensações quando o agora se ocupa de coisas complicadamente bem mais simples. Materializações desgarradas de futilidades nebulosas, atitudes interiores da alma que desmembraram profundamente o ser por vezes ingénuo que as fabricou.
O nascimento das palavras é o tempo de sonhadores, de poetas e artistas. Essas entidades complexas nascem de maneiras muito distintas, mas os sonhadores não se preocupam com a sua forma, peso ou dimensão. Eles praticam a ação pura de sonhar para melhor extraírem os vastos e variados prazeres da vida, vida que é essencialmente um estado mental, vida que é essencialmente ficção… mas as nossas vidas não nos ensinam o que fazer com os sonhos, ou que gestos devemos praticar, ou sequer se nos devemos erguer, desoladamente, em esforço contínuo, para refazer os sistemas metafísicos onde nascem as palavras, e as nossas vidas tão pouco nos fornecem as explicações mais ou menos filosóficas de como tudo isto se constrói.
O Mago sofria, talvez fosse mesmo o maior dos sofredores, e sonhava feliz com o seu pessimismo inteiro que dizia não ter. Necessitava do seu pessimismo para ser um sonhador feliz, era isso que ele dizia, sofria em coisas reles, feria-se com coisas tão banais, e sabia que ao pé das suas todas as outras dores lhe pareciam falsas ou mínimas, pois ele era um prisioneiro encarcerado nas suas próprias imagens, numa qualquer outra parte da existência humana onde se refugiou. E foi isso mesmo que um dia resolveu exclamar:
- “Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei muita atenção. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam.”
Deus criou esta impossibilidade de te conhecer, desejava ver-te ao virar de uma qualquer esquina e poder conversar contigo, verdadeiramente, num café de bairro, e ficarmos ali os dois, horas perdidas, a falar sobre hortas e pomares, sobre a quinta que foi só um teu sonho.
É já uma saudade que eu tenho não poder escutar o som da tua voz, está guardada na minha memória, numa passagem de nossas vidas em que nos encontrámos uma tarde, e duas, e três, e depois uma semana inteira, para perscrutar as árvores da beira da estrada e algumas paisagens de algumas vidas que não inteiramente interiores.
Deus criou esta e tantas outras impossibilidades, tu e eu sabemos os paraísos que Deus poderia perfeitamente ter arranjado, postos naquelas perfeitas ordens de existir…
Hoje é apenas mais uma quinta-feira qualquer, ergo a cabeça e vejo de minha janela a manhã fria do dia cinzento a existir. Descrevo-a neste papel imaginário, cada vez mais consciente da minha mortalidade e esbatimento, descrevo-a, não como ela acontece, pois sobre esta manhã de outono muito mais poderia ser dito. Doces palavras ocas de um rio encantado onde eu e Pessoa molharíamos os pés, e daqui a pouco chegará mesmo o meio-dia desta quinta-feira qualquer.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

41 - A ESCRITA E A LEITURA SÃO O NOSSO SANGUE



O Mago observava velhos sonhadores que passeavam, oscilantes, do outro lado do passeio. Pratico a mesma tarefa solitária de vislumbrar os viajantes que atravessam espaços próximos de mim, estou inerte e atento, medito um pouco mais com os seus passos até desaparecerem da minha vista, até me saírem da atenção. Agora mesmo estou inerte a pensar tudo isto, devo a mim próprio a necessária dolência para construir este fio de raciocínio que se espalha como as nódoas da toalha que ficou por sacudir. Estas palavras são migalhas que enchem a gaveta da cómoda antiga, perdidas no fundo gasto pelos anos em que lhe deram uso e se esqueceram de a limpar. Pobres companheiras de versos banidos a tremeluzirem, omissas e desprezadas, heroínas sedutoras que talvez ninguém venha a descobrir.

Estou a ficar cada vez mais cansado e sem vitórias para saudar. Apetece-me fugir à pressa para um outro lugar onde pudesse acordar e escrever semanas inteiras sem parar. Continuadamente as palavras nasceriam sem travão e sonhariam mais alto do que as anteriores, seriam a tropa de um exército galopante em que milhões de soldados combateriam a asfixia da alma com uma literatura sedutora e enraivecida. As esquinas inexistentes onde habitam os inimigos da inércia derreter-se-iam à sua passagem e todos os mundos seriam acrescentados de felicidade porque lhes seria servido um sonho sem morte ou ilusões.

A felicidade existe porque o sonho existe e o abismo onde aprisionaram as dúvidas será por eles derrotado. Vejo o início dessa batalha com a mesma clareza com que as palavras surgem, relampejantes, na falsidade esbranquiçada da folha onde acontecemos. Inconsciente, afago e afogo-me nestas migalhas esquecidas que fitam a vida dos outros com estremecimento. A lógica desvanece-se com o nascimento das palavras, com o nascer do dia, com a manhã quente e morna deste dezembro assombroso de azuis intensos onde minhas pálpebras descansam. A oriente vejo raiar o dia pacífico.

Não entendo porque estamos aqui, duvido que esta paisagem agora fria nos pertença e nós a ela. Que vida é esta, que impérios do nada fundamentam a mesquinha realidade? Somos gloriosos piratas derrotados por Césares vingadores, os abismos da desgraça engoliram as galeras imperfeitas onde navegávamos e a promessa de existirmos num mundo melhor acabou ao raiar do dia. - Para Oriente! Avancemos em direção a Oriente! Tomemos de novo as rotas mareadas pelos nossos antepassados antes da completa e total estagnação do universo, sejamos outra vez heróis nada monótonos, antecipemo-nos aos adversários e inimigos, aos tiranos e a todos os outros seres humanos que, como nós, procurem desesperadamente por aventuras. Antes dos cérebros degenerarem e começarem a divagar verdades inconcebíveis, tiremos partido das paisagens azuis em que os contrastes perenes são, porventura, o que de mais sublime a mãe natureza imaginou.

Desci a mim e voltei a sentir o sono perpétuo que me sustenta o corpo.

Esqueci-me das palavras, a bebida ajudou-me a apressar esta sonolência constante que acabou por tomar conta da minha mão sonâmbula. Oferenda quase trágica, tão doce e perfumada, quente oferenda que me pesa nas pálpebras e me envolve o corpo numa bendita embriaguez.

Desceu a noite durante a viagem, não sei se por magia, não sei se por maldade, desceu e espera que mais uma vez a ela sobrevivamos. É uma esperança sempre renovada, despertar depois de adormecer, acordar a alma cansada, por debaixo de estrelas repousada, sobreviver ao nada, do nada e por nada, fitando as constelações esperançosas que nos alumiam a viagem e a lucidez.

Loucura, agonia, rituais, ideologias, a Humanidade posta perante fórmulas e lógicas e normativos estruturantes onde as liberdades deixaram de ter lugar ou posição. Excessos de linguagem, próteses ingénuas para contextos e referenciais grotescos, prefiro um bom zapping e viver sem nada saber desta decadência alucinada da espécie humana. - Para Oriente! Avancemos em direção a Oriente! Tomemos de novo as rotas mareadas pelos nossos antepassados antes da completa e total estagnação do universo, sejamos outra vez heróis nada monótonos, antecipemo-nos aos adversários e inimigos, aos tiranos e a todos os outros seres humanos que, como nós, procurem desesperadamente por aventuras. Antes dos cérebros degenerarem e começarem a divagar verdades inconcebíveis, tiremos partido das paisagens azuis em que os contrastes perenes são, porventura, o que de mais sublime a mãe natureza imaginou.

Sim, gritei uma outra vez, soprei aos sete ventos a mesma mensagem surreal e fiquei contente com o sangue derramado neste deserto ao qual pertenço, tão intenso e profundo e desconhecido.

Antes de voltar a adormecer, contemplo a estética performativa do capítulo que hoje cultivei. Sem o tomar por coisa séria, pois nada é sério, tudo é falacioso e meramente contemplativo, escuto o Mago Fernando a dizer-me que o devo fazer lendo bem alto para proporcionar a plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.

sábado, 10 de dezembro de 2016

40 - SOSSEGO



A calma com que derramarei este pensamento inútil ainda por acontecer talvez tenha o condão de me tranquilizar o espírito. Sinais de permanente frustração brotam incessantemente das minhas palavras, e ao descer a essa penumbra desassossegada da alma já não me sinto tão livre, antes encontrei matéria inconsciente de uma vacuidade que me pesava e que eu desconhecia. Com esforço talvez consiga voltar a captar nas coisas externas uma espécie de ternura de sentimento, um maior sossego e compaixão, terei de repetir com paciência essas tentativas, gloriosa compreensão de murmúrios menos neuróticos em recantos meus.
O Mago sabia que toda a vida humana é um movimento na penumbra e que somos apenas qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo. Relia-se e interrogava-se e sentia-se uma paisagem indistinta e confusa constantemente numa véspera de despertar. A sua voz tem sido minha nestas conversas dispersas em que nos deslocamos paralelos ao mundo, de bom grado. Falamos às escondidas um com o outro e com ninguém, vaidosos de nossos esquecimentos, mentirosos como poucos, pensadores voláteis, viajantes entre estações cósmicas suburbanas, meros bichos a estrebuchar estas imagens estúpidas de vidas paralelas, ainda mais estúpidas do que ela.
Repouso da única maneira que sei, escrevendo sensações novas, as coisas devem ser explicadas como nós as sentimos e eu ainda não sei que coisa é essa de conseguir dormir sossegado.
O esforço não está a resultar, tento acalmar-me, sentir de outra maneira a vida circundante, dormir menos, dormir mais, arranjar um modo menos convalescente de mudar a alma sem a mudar. Rapidamente o corpo muda, bem mais depressa que o desejado, e eu acalmo a fera confidente com um belo naco vermelho e branco de carne fresca acabada de cortar.
Fita-me a água do rio onde refrescamos as pernas com um olhar simbólico, uma água doce e espelhada devolve-nos a imagem dos rostos que não podemos ver, os nossos rostos velhos em corpos curvados a fitar o espelho fresco e cristalino onde descansamos.
Mago, qual a razão do teu entusiasmo? A tua expressão foi capaz de ser iluminada pelo desenho de um sorriso, tão contrário ao classicismo quase seráfico do teu traje escuro. Gosto da maneira como te sentaste a lavar os pés na água fresca deste ribeiro, hoje podemos ser sinceros um com o outro, talvez nunca mais tenhamos uma oportunidade como esta, julgo mesmo que um momento assim será irrepetível.
Amanhã seremos uma outra memória qualquer, coisa distinta de agora, esta é a minha convicção.
Não me posso entusiasmar, pois seria uma grosseria tamanha…
Sinto-me feliz, persuadi-me a exteriorizar esta emoção ao ver-te sentado, sorridente, junto ao ribeiro onde conversamos. Estou apenas a ser sincero, nada mais do que isso, um instante breve de sinceridade sossegada. Gosto destas conversas mudas que praticamos os dois, gosto delas mais do que tudo na vida.
É tão raro tu compareceres, tão raro, e eu cheguei àquele ponto em que acredito nesta felicidade sincera que estou a sentir.
Hoje é domingo, a luz deste ainda outono ilumina-te, e a tua proximidade é mais legítima que esta realidade mentirosa que atravessamos. Amo esta paisagem impossível, este encontro irrealizável, este devaneio sincero em que acredito. Mago, porque razão amamos paisagens impossíveis e áreas desertas onde nunca estaremos?
A rua lá fora segue parada, sem gente na rua. As pessoas apinham-se e acotovelam-se nas lojas de espaços titânicos preparados para combates ferozes de movimentos incertos e sonâmbulos. Correm para prateleiras em permanente tensão consumista, nervosos seres metafísicos, navegadores flutuantes de aspeto pálido e automático, marcham sobre o impossível artigo e vencem os restantes inimigos com armas carregadas com cupões de descontos. Estão inebriados com tanto brilho e glamour, com odores a incenso e mirra e infinitas sonoridades natalícias tão iguais ao que sempre foram. A anestesia resulta e os vagabundos roçam-se pelo meio de pijamas cor-de-rosa com orelhas de ursos, almoçam apressados e debruçam-se sobre brinquedos plastificados de proveniência contrária à da felicidade.
Sossego.
Nada disto é verdadeiro.
Sossego, dormi abandonado esta tarde de domingo e afastei-me dela mentalmente, de olhos abertos, pesados como um universo inteiro.
Sentado, larguei-me nas águas desse ribeiro onde conversámos e já não te vi. Era inevitável. Os intervalos em que te posso encontrar são cada vez mais curtos e ilusórios. A realidade da vida que sou é esta brisa que me envolve ao fitar o riacho onde não estamos.
São bem mais inteligentes os outros que vivem vidas monótonas e delas são capazes de retirar uma contente felicidade. Não existe razão nenhuma para esconderem o que verdadeiramente possuem.
O Mago sabia que cada homem é só quem é, e o erro central de toda a imaginação literária é supormos que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas também esta será uma verdade inexistente, porque a verdade não está com ninguém, apenas a vida monótona de cada um está com quem a sente e dela retira os seus gratos privilégios.
O mais grato serão os sonhos inúteis que consigo visionar mesmo no meio do meu trabalho, escapo para onde nos podemos reunir, à mesa do mesmo café de sempre, hoje, ontem, quando desejares, e conversamos nessa ilha longínqua em que nada nos pertence, alheios à sala de aula, aos corredores, ao escritório, às ruas e avenidas que percorremos para lá chegar, alheios a todos os oceanos, e onde gozamos, em plenitude, as extraordinárias visões interiores destas conversas inexistentes.
Este era todo o sossego de que hoje necessitava para sobreviver.
Agora resta-me voltar a colocar a espada na bainha, descer à vida e reconhecer a minha derrota na igual proporção das palavras que nasceram nas margens paradisíacas deste riacho onde nos encontrámos para conversar.