sábado, 27 de agosto de 2016

13 - CONTENTAMNETO



Ficar contente por existir. Colocar a viatura em andamento e participar na ordem natural de todos os dias, atravessar a ponte, depois da curva, que nos leva até ao outro lado da cidade. Num repente observar as margens do rio que se projeta, solene, como símbolo maior da região. Ser quem sou, realmente, vender essa parte de mim que perpetua a sabedoria das matérias que leciono, repetitivas, constantes, geométricas e infinitas. Os mesmos rituais, semana após semana, mais cedo, mais tarde, uma outra vez, um outro dia, um outro mês, vender para comprar para existir… ficar contente por existir.
Os silêncios desses intervalos são frios e prolongados, cósmicos, suspendem até a respiração de quem sente um mal-estar por nada dizer, por permanecer silencioso e não-humano, por se sentir apenas parte de uma paisagem que antes ali não existia. Silencioso, sou uma porta fechada para esse estranho universo inteiro onde as trevas se enrodilham em papel de embrulho, simples como a lágrima inicial que deu origem a esta paisagem ressuscitada que hoje atraiu, momentaneamente, o meu olhar. Arrasto-me, diariamente, para a outra margem deste rio que separa a cidade onde habito, até a noite regressar, e a diferença entre as ruas ficar esbatida nos silêncios e eu passar a acreditar que valeu a pena viajar até ao outro lado da vida. Acredito, tal como o Mago me fez acreditar, que os sonhos, por vezes, erguem-se em coisas concretas para se confessarem idênticos à realidade, e assim se destacam. Confirmei esse meu receio, com angústia, durante mais uma travessia pela ponte à mesma hora de todos os dias. Fiquei exausto, perdi quase toda a minha inutilidade nessa deambulação fútil pelas pedras da imensa construção. Caminhei alheio ao meu reflexo ou filosofia, após esta manhã onde escrevi, após mais uma tarde onde escreverei. Enquanto durmo, viajo nas vidas que aí acontecem e me inspiram, viajo e escrevo na tentativa vã de diminuir a amplitude destes espaços que nos separam.
Reparo que as nuvens cinzentas se sobrepõem às brancas que se sobrepõem às serras que se sobrepõem aos telhados das casas e à ponte. Estou entorpecido, gostava de ter mais tempo para gozar este entorpecimento. Hoje podia ser domingo, ou melhor ainda, sábado de manhã, e o céu devia ser azul.  Quero não mais raciocinar, não desta maneira que antecede o que falta para a tarde chegar ao fim. As ruas deviam estar desertas, sem tráfego, seriam apenas vida ociosa a brotar do asfalto escuro, deviam ser luz e cor em vez de sombra e agressividade. O barulho da estrada incomoda-me, quem me dera não o escutar com a mesma violência que um recém-nascido vislumbra o universo pela primeira vez. O barulho da estrada relembra-me até o dia em que nasci e vi tudo pela primeira vez. As badaladas das nove tinham soado, abstratas, no sino da torre da vida, fronteira atravessada sem passaporte ou certidão. Cego, acomodei-me à banalidade para atenuar a dor de estar vivo. Supostamente, pertencemos a esta coisa real onde acordámos, um dia, e de onde partiremos sem necessariamente ter compreendido tanto fingimento.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

12 - MENTIRA



Desejava poder escutar aquele fado desconhecido que o compositor vestiu com as minhas palavras ainda por encontrar.
A canção assemelha-se a um cântico oriental articulado com os murmúrios de uma cidade quase deserta situada no centro de um longínquo país imaginário.
Os poemas encaixam na melodia como se tivessem sido feitos um para o outro, e a voz humana que a entoa, feminina, mergulha nessa história antes de cantar.
A doce balada ecoa no ar fresco da manhã, depois atravessa as areias do deserto que rodeia a cidade antiga e milenar.
As casas, os templos, as avenidas e todas as demais construções permaneceram fiéis à vontade dos homens que as ergueram do nada e as pintaram da cor do barro e da tempestade.
Perdi a conta ao número de vezes que a tentei encontrar, dias inteiros passados de testa franzida e olhos cerrados, a imaginar o calor impossível que a abafava, as dunas que a escondiam, a cor da pele dos seus habitantes, os trajes e dialetos por eles usados, e os oásis que a circundavam. Não consegui discernir muita coisa, até que a resolvi descrever com palavras por acontecer, para não mais a esquecer, para assim ajudar a perpetuar uma história nunca acontecida, mas suficientemente capaz de dar origem a uma canção ainda não nascida que já escutei.
Caio em mim e acredito nesta espécie de sonolência que me motiva a escrever, sem propósito aparente.
Fico parado!
Aproximo-me um pouco mais de quem julgo conhecer, e as palavras surgem, ou não, da mesma fonte, gota a gota, com lentidão, perdidas, dispersas, entregues em mão por um rapaz franzino que as trazia arquivadas numa mala negra de cabedal.
O miúdo ainda aqui está, de pé, estático, a olhar para mim, de guarda-chuva na mão. Traja calções curtos e casaco aveludado, camisa e meias brancas e uns impecáveis sapatos negros alongados, de sola rija.
Ninguém mais disse nada.
Lá fora, do outro lado da vidraça desta sala onde medito, a vida passa ligeira, por vezes tomba e esfacela o rosto no passeio deformado da rua, outras vezes ziguezagueia a imitar os movimentos ondulantes de um réptil viscoso.
O som da chuva oprime, sobrepõe-se aos demais, mas depressa o céu plúmbeo se alivia e as nuvens chorosas dão lugar a outras mais tranquilas. Uma tragédia está para acontecer na cidade oprimida, a atmosfera anda quente e abafada, uma luz natural, súbita e intensa, pulveriza-se na estrada às onze e meia da manhã. É um sinal, uma de várias premonições. O céu fica limpo e resplandecente para o lado norte da cidade que hoje acordou às escuras vítima de uma inexplicável falta de luz.
Sinto-me privilegiado por poder testemunhar tudo isto em direto, antes dos restantes mortais, que felizmente possuem outras ocupações bem mais condizentes com um estado de alma saudável e iluminado.
Sinto um estranho e inexplicável privilégio por sofrer desta crueldade de não conseguir abafar a descrição de factos invisíveis. Remeto a explicação do fenómeno para homens bem mais experientes e doutos nestas matérias, peritos destacados e premiados, com obras publicadas nas áreas em questão. Eu prefiro regressar à cidade primeira onde escutei o meu fado desconhecido. Foi também para isso que hoje sai de casa, e para conseguir sobreviver.
Hoje inventei mais esta mentira, e assim fiquei um pouco mais contente, porque existi no meio dela, e revi gente conhecida, um eu que já tinha sido a olhar para mim. Tive a certeza que era eu o rapaz que me entregava a mala negra com as palavras que necessitava para poder mentir. Depois de ter descido a rua, num dia chuvoso, o eu menino passado cumpriu as ordens que lhe disseram para entregar estas ideias aqui desenhadas ao eu homem presente. Não gostou lá muito do que viu, ficou admirado com a longitude e latitude dos lugares e com a fluidez irresponsável do Deus tempo.
Não admira que o Mago, que também escrevia do lado de dentro das suas vidraças, mentisse, cheio de certezas, pois todos os recantos são inúteis. Talvez menos inúteis possam ser os recantos inúteis onde nos refugiamos para conseguir escutar a nossa canção.

domingo, 7 de agosto de 2016

11 - OUTONO



Apareci, de novo, com o mesmo aspeto de anteontem, projetado nos contornos cilíndricos das árvores, tão invisível como sempre estive, um pouco por toda a parte. Foi-me impossível despertar sem reconhecer o que outrora me foi contado, a revelação surgiu cristalina, com cheiros intensos a azeitona e a lagar a levitarem na aragem desértica de mais uma manhã. Despi o torpor sem bocejar, abdiquei do descanso e mergulhei nos ruídos da rotina matinal que me cumprimentou até os olhos deixarem de me doer. A relva ainda estava bem verde na minha memória, cortada de forma impecável, emoldurando piscinas naturais de águas tranquilas onde ninguém se banhava. Os agricultores lavravam os campos deste súbito paraíso, e o resultado da faina era guardado em casas de xisto tão selvagens como a paisagem imponente onde trabalhavam. Ajudei-os no que pude e consegui, subi as encostas das serras com a enxada às costas e a foice presa à cintura, e há muito tempo não relembrava esse eu que também fui. Senti-me menos triste nesse lugar, com as calças sujas de terra e de musgo, a camisa encharcada em suor e os cabelos desalinhados, mas bem mais consciente do que agora ao mirar o elétrico que passa e me desperta o desalinho.
Eis-me chegado ao hoje, mas o tempo de esquecê-lo depressa chegou, embrulhado na mesma luz diáfana que vestiu o meu reino neste dia. Porta aberta, porta fechada, abraço o escuro que ilumina os impérios renascidos das cinzas. Afago a terra remexida e arada com os dedos sujos e ensanguentados, limpo a face com o pó e a lama de que se formaram esses solos pedregosos outrora secos, tão vastos, e os servos bailaram e lançaram as sementes com vozes alegres, à desgarrada. As vozes fundiram-se, evocaram o poder das forças invisíveis para proteção das colheitas. - Que sejam fartas! -  e que nada as possa destruir!
Reconheci as tonalidades do céu e o que elas nos diziam, entendi as melodias das brisas e dos ventos, dormi, leve como o ar e as nuvens. Mais um sonho aconteceu, e nele fiz e antecipei coisas que só podia esperar nessa outra vida onde tudo era feito de gestos repetidos que os antigos me ensinaram. Brincava ali, naqueles territórios desconhecidos, como se sempre tivesse permanecido uma criança. Todos éramos crianças reunidas ao redor das mesmas vontades e desejos, de pés descalços, pobres, mas mais ricos do que os imperadores do planeta. Vivíamos na casa vulgar de nossos avós, sentíamos a mesma ternura desconfortável do velho colchão de palha rijo onde dormitávamos, e entretínhamo-nos a raspar a cal desalinhada da velha parede para onde nos virávamos antes de adormecer. O soalho rangia de contentamento, e assustava-nos. Mentíamos e dizíamos não ter receio do que escutávamos. Passávamos horas acordados a fazer de conta que éramos valentes, até que a mentira se desfazia e o cansaço nos vencia. Depois, a maldade decidiu transportar-me com rapidez até este hoje que aqui acontece. Viajei, célere, através destas novas palavras à velocidade do não-desejo.
Esquecer é um verbo bem diferente de sonhar, e o mais certo é ambos serem miragens do antigamente, peças soltas e desconexas de misteriosa extensão. O frio acontece, a chuva regressou de forma quase impalpável para beijar as paredes velhas dos prédios desalinhados. Tinha-me esquecido do quanto aprecio escutar o barulho da chuva a bater nas vidraças enquanto a música de Chopin desfila pela sala tranquila. Hoje chegaram as primeiras chuvas outonais, medrosas e inocentes, irregulares, e escrevo-o aqui somente para poder relembrar este dia num outro outono qualquer.