Ficar contente por
existir. Colocar a viatura em andamento e participar na ordem natural de todos
os dias, atravessar a ponte, depois da curva, que nos leva até ao outro lado da
cidade. Num repente observar as margens do rio que se projeta, solene, como símbolo
maior da região. Ser quem sou, realmente, vender essa parte de mim que perpetua
a sabedoria das matérias que leciono, repetitivas, constantes, geométricas e
infinitas. Os mesmos rituais, semana após semana, mais cedo, mais tarde, uma
outra vez, um outro dia, um outro mês, vender para comprar para existir… ficar
contente por existir.
Os silêncios desses
intervalos são frios e prolongados, cósmicos, suspendem até a respiração de
quem sente um mal-estar por nada dizer, por permanecer silencioso e não-humano,
por se sentir apenas parte de uma paisagem que antes ali não existia. Silencioso,
sou uma porta fechada para esse estranho universo inteiro onde as trevas se
enrodilham em papel de embrulho, simples como a lágrima inicial que deu origem a
esta paisagem ressuscitada que hoje atraiu, momentaneamente, o meu olhar. Arrasto-me,
diariamente, para a outra margem deste rio que separa a cidade onde habito, até
a noite regressar, e a diferença entre as ruas ficar esbatida nos silêncios e
eu passar a acreditar que valeu a pena viajar até ao outro lado da vida.
Acredito, tal como o Mago me fez acreditar, que os sonhos, por vezes, erguem-se
em coisas concretas para se confessarem idênticos à realidade, e assim se
destacam. Confirmei esse meu receio, com angústia, durante mais uma travessia
pela ponte à mesma hora de todos os dias. Fiquei exausto, perdi quase toda a
minha inutilidade nessa deambulação fútil pelas pedras da imensa construção.
Caminhei alheio ao meu reflexo ou filosofia, após esta manhã onde escrevi, após
mais uma tarde onde escreverei. Enquanto durmo, viajo nas vidas que aí
acontecem e me inspiram, viajo e escrevo na tentativa vã de diminuir a amplitude
destes espaços que nos separam.
Reparo que as nuvens
cinzentas se sobrepõem às brancas que se sobrepõem às serras que se sobrepõem
aos telhados das casas e à ponte. Estou entorpecido, gostava de ter mais tempo
para gozar este entorpecimento. Hoje podia ser domingo, ou melhor ainda, sábado
de manhã, e o céu devia ser azul. Quero
não mais raciocinar, não desta maneira que antecede o que falta para a tarde
chegar ao fim. As ruas deviam estar desertas, sem tráfego, seriam apenas vida
ociosa a brotar do asfalto escuro, deviam ser luz e cor em vez de sombra e
agressividade. O barulho da estrada incomoda-me, quem me dera não o escutar com
a mesma violência que um recém-nascido vislumbra o universo pela primeira vez.
O barulho da estrada relembra-me até o dia em que nasci e vi tudo pela primeira
vez. As badaladas das nove tinham soado, abstratas, no sino da torre da vida,
fronteira atravessada sem passaporte ou certidão. Cego, acomodei-me à
banalidade para atenuar a dor de estar vivo. Supostamente, pertencemos a esta
coisa real onde acordámos, um dia, e de onde partiremos sem necessariamente ter
compreendido tanto fingimento.