sábado, 29 de outubro de 2016

28 - MEMÓRIA



A mais estranha das vilas é esta onde nos encontramos.
A memória desfaz-se à nascença, perdemos as palavras que nos acompanharam e se abriram em flor para logo nos esquecermos de tudo, e num clarão a incógnita instala-se, a alma rebela-se para tentar sobreviver. Os outros que fomos esqueceram-se de como aqui chegaram, são o novo viajante guerreiro, vencedor de demónios alados e da escuridão, são esse ser recém-nascido que cresceu em ventre desconhecido e, num repente, encheu os pulmões de ar para receber a bala no peito. A luz que tudo invade e cega é a vida e a morte a aconchegar.
Que estranha é esta vida onde nos encontramos.
E que num repente se apaga, tão cruel, tão magnânima, e nesse instante todas as palavras são recordadas e nós somos ali, o tudo e o nada que já passou.
O sono novo que me visita é esta jovem gazela perfumada que salta feliz em liberdade. A entidade divina é selvagem, avança pela savana onde hoje descanso para provar que estas palavras existem. Esculpem as frases artificiais e a vida exterior que me acontece. O Mago foi a estátua e o escultor, criou-se em calma, tal como disse, para depois se pôr em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas. Assim floresceu, em afastada beleza, a flor absurda da sua artificialidade. Depois questionava quem era por detrás de tanta irrealidade, sabia que devia ser alguém, mas não se reconhecia…
A gazela alimenta-se alegremente, e eu procuro não a perturbar. Imagino-a não real, mas é difícil porque está aqui à minha frente, não muito longe, nítida, inevitável na sua forma de animal elegante com os detalhes inteiros, branca e negra e alaranjada. Vale todos os segundos do meu dia esta visão admirável do animal. O Mago está aqui ao meu lado. Observa, silencioso, a perfeita natureza da gazela. Nada mais nos pertence, apenas a recordação ilusória do meu novo sono onde me busco e procuro, onde as imagens são inevitáveis e os sons definem com clareza o lugar onde nos encontramos. O meu amigo está aqui ao meu lado, o meu novo amigo, o meu Mago… é ele, sem dúvida, quem agora me acompanha. Morreu, jamais!
A gazela olhou a direito nos nossos olhos. Depois desviou a cabeça antes de partir, e nós sentimos de imediato uma saudade imensa da deusa imaterial que nos juntou.
Invenções, sou todos os pedaços destas confusões.
As palavras nascem, o Mago diz-me como nascem as palavras, apertam-se dentro do peito sobressaltado antes de saltarem feitas deusas gazelas. Eu, de certeza, seria um outro bem diferente se não as perseguisse. Fico quieto, permaneço imóvel uma pequena eternidade, nunca me importei de esperar pelo nascimento das palavras. A beleza do encontro justifica plenamente a minha decisão. Faço-me desentendido quando penso nos dias passados a escrever, o tempo que perdi a esculpir essa outra memória de mim. Sinto-me sempre mais velho quando observo as deusas gazelas nesta savana sentimental onde me escondo, mas hoje o Mago resolveu acompanhar-me, deu-me um aperto de mão e sorriu. Estava longe de imaginar este sonho antes de acordar. Os nossos olhos leram a alma do outro, com carinho e amizade, embora não o quiséssemos. Aconteceu, depois não dissemos nada. Bebemos um café na savana, sem gazelas por perto, sentados de pernas cruzadas, um em frente ao outro, um pano de cozinha aos quadrados brancos e vermelhos lançado no chão por debaixo das chávenas. Soltámos os sapatos que arrumámos ao nosso lado direito, alinhados, com as biqueiras viradas para trás. As chávenas bem quentes, o travo amargo da bebida a acariciar o palato, uma emoção sem fim…
O dia ainda só agora começou na estranha vila onde nos encontramos.
Tudo, porém, é falso. E sombras são os nomes das coisas, e das pessoas, e dos animais. O Mago embarcou de regresso a casa, e nem se calçou. Pegou apenas nos sapatos depois de beber o café amargo, para melhor viajar no tempo. Gritou-me, de muito longe, que nem sempre as sombras são aquilo que aparentam ser. Permaneci sentado. A emoção impediu-me de reagir à sua partida, sei que foi impossível tudo isto que aconteceu.
Agora, neste exato instante, escrevo as palavras carregando em cada letra, à vez, no meu pequeno aparelho reprodutor. A máquina alinhava as ideias num ecrã luminoso que me permite a ligação às memórias. Assisto, sentado, depois de mais uma torrada e um café, à vida fechada nesta gaveta onde soçobro. Incógnito, desfaleço mais um pouco, amo as palavras mais um pouco, espero pela vida mais um pouco, aqui existo e me reconheço, mais um pouco, e sombra é igualmente um nome meu. Releio as frases acabadas de esculpir, poeiras desfeitas pelo vento da savana abandonada onde nos encontrámos mesmo agora. Sei lá que vida é esta que o destino me serviu, que vila estranha é esta onde decidi morar, que sombras me perseguem, que sombra projeto eu nas sombras dos outros, e das coisas, e dos animais. Todos os dias são novas batalhas que me acontecem, tal como a deusa gazela que eu pensava perseguir. É ela quem me tem perseguido, e eu não a vejo, apenas quando escrevo, apenas quando escuto ou utilizo esta máquina de teclas quadradas que me ajuda a guerrear. Antes era no papel que as lutas aconteciam desiguais, mas tanto faz se as palavras nascem no papel ou nestas teclas em miniatura, nascem e devem ser registadas, se me atormentam, traço os seus planos e os seus esquemas e esculpo-as, disponho-as uma a uma, como se fossem coisas minhas, sombras de pensamentos meus…

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

27 - UNIVERSO



Ergo-me, e os ruídos do dia estalam-me dentro da cabeça, bruscos, dolorosos, tornam-me o corpo menos etéreo e o pescoço mais quebradiço. O fio invisível que nos prende à vida liga-se ao primeiro vislumbre frouxo da luz da manhã, a cidade espreguiça-se, as circunstâncias abstratas deste novo despertar quebram os silêncios, e avançamos.
Atropelo os chinelos porque sonho ainda…
Prendo os olhos numa cadeira carregada de roupa abandonada, abro a porta para me rever no mesmo espelho de todos os dias, e dou por mim a repetir a mesma rotina debaixo das cores familiares destas paredes. Deixo de saber se esta é a hora e o dia certo para eu estar desperto neste ponto central do único universo que conheço.
Os reflexos da luz adornam o meu acordar e todas as coisas que a ele pertencem, e eu sei lá se existo, ou a cadeira que vejo, ou esta inteira habitação, ou o esquecimento que vou ter deste novo dia praticamente terminado em que eu me intervalei a escorregar pelas impassíveis pontes do tempo. Parti e ninguém me reconheceu, os outros habitantes da metrópole usam o mesmo tipo de máscara para não se sentirem estranhos, tão vazios, mas aqui neste lugar somos todos ilhas sem notícia que mereça a pena, senhores falsos de paisagens mentirosas, estátuas Moai de costas voltadas para a imensidão do mar oceano que é vida nunca conhecida. O universo inteiro é povoado por mascarados que foram trocados à nascença, e ninguém suspeita. A minha máscara já não é tão pesada, vejo-me ao espelho e reconheço quem fui.
 O coração bate no peito, as mãos seguem à risca a coreografia de anteontem, do mês passado, dos anos que já esqueci e que num instante voaram. O universo é o que se passa na minha rua, o que nelas vislumbro, as luzes e cores parecidas com as que somos, as frases esquecidas que surgem a cada esquina para nos estender a mão, à espera que eu me faça homem sem máscara. As palavras surgem, repentinas, e a cegueira que me move diariamente fica alterada por essa espécie de exaltação, e o engano do universo real é permutado por essas maravilhosas pérolas anónimas que procuro decifrar. As lógicas outrora desconhecidas ganham novo fulgor, e o ator deslumbra-se, deixa cair a máscara e reconhece-se mais inteiro, menos falso, o palco metafísico de uma nova sensação de mim.
O universo paralelo é um somatório aparente de ilusões, mas este é o universo onde os enganos e as loucuras enchem os tempos de verdade com uma não-ficção caótica que eu amo e estimo acima de todas as outras, acima de mim próprio, acima do alucinante erro em que acreditamos, acima da extensão dos sóis e das luas… é nele que prefiro não acordar.
Falso, estou mascarado nesta individualidade, e caminho cansado, o sono a pesar, realmente, e os erros acumulados tão difíceis de descrever, o que será que existe… esta luz? Esta sala onde medito? A alma que me fala, ou a que me ajuda a escutar? A ponte onde caminho, existe verdadeiramente? Talvez seja chegada a hora de dormir. É tarde, a meia-noite desapareceu, é já uma da manhã, por agora ainda estou acordado, mas é difícil viajar sonolento entre as dunas da madrugada e os oásis refrescantes do novo amanhecer.
Memória, palavras, acordei hoje neste ontem revigorado que já passou.
Os móveis encolhem, as paredes diminuem cada vez mais os espaços claustrofóbicos deste universo adormecido.
Foi um momento.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

26 - AS PALAVRAS SÃO BRINQUEDOS



Ergo-me da cadeira para melhor conseguir escrever, e preciso de tempo para o fazer. Se parar morro, quantas vezes estamos mortos, presos à superfície sobrenatural das coisas imbecis. A civilização inteira é uma imbecilidade sem remédio, sem eira nem beira, um jardim a definhar, desalinhado, modificado, onde as árvores deixaram de crescer. As flores murcharam porque os jardins passaram a ser inúteis e grotescos. Bebo mais um pouco para melhor conseguir escrever, e preciso de tempo para o fazer, e tem de ser de pé, igual à morte das árvores, os bancos e as cadeiras não me servem para compor com espontaneidade, já não me consolam. Extrair uma coisa boa de várias coisas más, mas há dias em que nem de pé consigo contemplar a inutilidade dos quatro cantos do planeta e a futilidade das palavras que componho. Que bom seria se o português não fosse esta língua complicada e pomposa, a simplicidade ilusória dos textos acabaria por se revelar mais terra a terra, menos figurante trágica de um romance de Eça ou Almada, menos Torga, menos Cesário, menos cenário das estrelas, menos palco de distrações anémicas, muito mais feliz.

Depois nasceu o Mago, rei esquecido e encontrado, sobressaltado por tudo o que era esquecimento e recordação. Encontrou a paisagem que lhe pertencia e inventou o canteiro onde plantou as sementes da nova linguagem. Escovou as palavras e usou um pano para lhes dar um novo brilho. A ilusão da simplicidade é do mesmo peso das nuvens, não tem consciência do céu onde vagueia. Os brinquedos tomaram conta do éter e a vida inteira passou em imagens à sua frente. Ele interrogou-se e desconheceu a pessoa que era, passou o tempo inteiro a construir versos em prosa, a interpretar confusamente coisa nenhuma, e nada era simples, tudo se desmanchava do alto de um penhasco num hospital sem paredes, num soalho aguçado sem rede de proteção. A terra nula e suja foi a passagem que o Mago usou para construir a tragédia das suas palavras, em pé, sempre de pé, até ser um quase farrapo incógnito, uma vedeta enlouquecida de um espetáculo rocambolesco. Sem jeito para despedidas, manteve-se fiel nessa incessante busca da simplicidade impossível dos textos, nuvens apenas…

O olhar de quem se interroga é um olhar distante e perturbado.

A desilusão de ser alguém, é importante encontrar esse alguém que somos dentro de nós. Uma vida branca e leve, simples, não silenciosa e simples, tão difícil de recuperar. Simples, tudo deveria ser simples e não religioso, apenas humano, fresco, transmissível por palavras leves carregadas de significados. A noite agora chega tão cedo que atordoa, e arrisco espreitar a penumbra da minha varanda com olhos de gato ao sol, e vou sumir-me até me perder de vez pelas encostas. Agora que perdi os sentidos, vou dormir despreocupado sob uma árvore que não dê sombras, a mais ilógica e simples de todas, e o som do meu sangue de felino aquecer-me-á as palavras novas, bem mais simples que as anteriores, menos portuguesas. Foi difícil acariciar a melodia deste cinzentismo molecular de todos os dias, e a claridade que me chegou foi insuficiente, mais uma vez.

Boceja o gato que sou, fazendo de conta que é feliz a gozar a merecida sesta. Repousa com a cabeça escondida entre as patas e a cauda, menos humano, muito mais real.

sábado, 22 de outubro de 2016

25 - SOLIDÃO



Habituei-me às vezes que larguei o corpo pelas estradas secundárias e menos emocionadas da vida, mais entre sonhos, assim mais anteriores às emoções decalcadas desta lógica imaterial onde tudo acontece. Desdobrei-me pelos vários caminhos e atalhos que encontrei, gostei de todos, percorri-os com gosto e fi-los coisas minhas. Dispersei-me ao mesmo tempo que cada passo dado me tornou mais uno e capaz, menos dolente e inquieto. Eu estou aqui e deixei de ver. A operação foi dolorosa e tive de aprender a viver, consciente e inconsciente, enquanto o cérebro me pedia para descansar. O instinto oculto de onde reencarnei trouxe-me até este dia tranquilo, mais longo que o normal, um dia sem raciocínio nenhum e de uma emoção tremenda. A cabeça pesa-me menos do que ontem, mais que amanhã, e a dor que nela sinto concentra-se atrás, junto à protuberância occipital externa, onde as metáforas costumam brotar e ganhar uma condição tão falsa quanto humana. Este estado humano-falso é contraditório e muito difícil de decifrar. As frases que escrevo são criaturas mentirosas que só me fazem visualizar o inconcebível. Demoram a nascer figuras, passam fome e sede, e magoam só porque surgem de mim e eu sou capaz de as visualizar, mesmo se as semanas em que isso não acontece derrotam a parte insubmissa de quem julgo ser. A recompensa é ter aprendido a sonhar sem necessitar de fechar os olhos. Dessa maneira foram construídos episódios inteiros em cada sensação de eu poder encontrar pedaços de mim nesses pedaços. A voz de outros relatada num mar de palavras marinheiras saídas deste pátio inacabado ao qual ainda pertenço. Assim nascem as palavras e logo cresce a saudade dessa impressão criada neste outrora vazio. O Mago dizia viver de impressões que não lhe pertenciam, e sentia-se um perdulário de renúncias. Destruiu-se para criar, foi a cena viva por onde passaram os atores de várias peças... Eu entendo a ruína desse seu desassossego, e de como viveu uma vida inteira construída de desesperança e com fé que as suas palavras transportassem os ventos da mudança. Hoje, neste dia maior do que os outros, dormi para lá do razoável. O descanso fez-me bem. Depois de tanto silêncio, fiquei sem o vestígio desse sonho na consciência. Escutei o ruído da estagnação tardia até acordar e deu-se em mim uma nova inoperância. As emoções pararam até ter deixado de escrever. Dormir é essencial para recuperar o amor e as palavras. Terei de mergulhar na minha inteira nudez até que o somatório dos instantes de ausência ajude a cobrir o meu peito. Do meu occipital renascerá uma nova geração de palavras orgânicas, ocasionais, fiéis a uma não monotonia incerta, e isso terá de acontecer antes do século terminar. Tenho sono, apesar da vida andar depressa demais. Tenho ainda mais sono do que no dia em que a hora andou para trás e nós regressámos a um passado inventado. Assisti ao dia mais longo, e eu a dormir nele mais uma hora esquecida. Sucede-me com frequência maldita assistir a esta viagem no tempo, todavia tão diferente, tão monótona e tão curta.
- Aqui estou!
O que falta para atingir as palavras do meu passado é só não fazer nada e aguardar que nasçam enquanto sonho descalço na mesma cama disfarçada onde ontem me deitei.
- Estou cansado porque fiquei quieto. Porque não agi. Um cansaço que só me dá mais vontade de dormir.
A sala remexida como um livro antigo de folhas gastas onde os meus olhos descansam e eu me sinto e conheço. Pousei a monotonia inteira nestas palavras recém-nascidas e já sou um outro personagem da minha história. Lembrei-me de descansar, sou onde estive e vivi, sou onde escrevi as primeiras frases antes de ter sono, e estas mais recentes em que me transformei.
Beijo-te em memória com uma nitidez provinciana que me salga a língua de paixão. Aproximei-te de ti, dos teus sabores inteiros, as nossas duas vidas afastadas e a chama quente a correr dentro de milhões de memórias de sonhos especulativos. Conheço-me melhor quando te beijo, mesmo que não seja na boca, todos os nossos beijos ficam marcados na alma com uma nitidez inebriante que eu relembro, e neles revejo a minha infância igual às palavras novas que descem por esta página onde nunca moraram. No teu rosto desvendo a nossa existência apaixonada. Despimo-nos para imaginarmos como seria se os nossos corpos quentes naturais se tocassem, tão sagrados e azuis…
Torturamo-nos, sem razão aparente, em busca dessa frágil felicidade, e ao mesmo tempo perdemos o que nunca fomos nesta cela distante que nos distancia e nos une.