sexta-feira, 7 de outubro de 2016

20 - A PRAIA DO MEU SONHO



Desci as escadas, apressado, saltei os degraus dois a dois e, sem andar, dei ao corpo outra direção. O ar fresco espalhou-se por onde devia, longe da velha quinta ao redor da qual os prédios foram acontecendo, e só parou a sua rápida viagem na mesma praia de todos os dias. Passeei-me descalço na areia húmida desta manhã, na sua companhia, e senti melhor a vida ao tocar a água morna e o voo das gaivotas. Decidi refrescar-me na baixa-mar, desatei os pensamentos da alma e os enredos que ela aprecia tecer, mas hoje não deixei, quis somente bastar-me, eu e o ar e o mar salgado, e o sorriso da paisagem que vejo só de cheirar. Tanta satisfação deixou a descoberto a razão de ser desta hora que tinha de existir. Não passear pela praia de manhã, sempre que me apetecer, tem-me causado mais cansaço do que passar os dias inteiros debaixo desta tormenta falsa que me fustiga. Olhar o rio não é suficiente, nunca o foi, e mesmo agora que o calor do verão cessou, esta chuva tranquila ri de mim, mas não é suficiente. Abrandei a minha impaciência sem dar por isso, com os joelhos debaixo de água, os pés bem enterrados na areia e a olhar para o simbólico ocidente onde o sol se deitará, ele que nunca parte, ele que não descansa nem dorme, sorri atrás de mim, real, e eu levo-o a passear numa cadeira de rodas sem brilho nenhum, e ajudo-o a repousar numa cama limpa feita de lavado com lençóis perfumados, e ele sem nunca perceber. Talvez não fosse bem isto que eu quisesse dizer, mas observo o mistério menos desatento do que gostaria, continuo a fazê-lo para me manter coerente, agora que a água ficou mais fria do que tépida, e sou atacado ao pé das escadas que desci por uma impaciência que me faz estremecer. Medito em vão, o que é isto que eu faço para deixar de jogar xadrez com a vida? Arranco-me desse sossego todos os dias, quase à mesma hora, e tento recordar as vozes que escutei dentro dos sonhos inacabados, eterna impossibilidade física da alma, e sofro mais um pouco ao tentar compor essa angústia momentânea que a luz do dia dissolve na temperatura amena do quotidiano. Passo horas a tentar desvendar alguns desses segredos com os pés molhados, e o olhar mais cheio de por do sol. De mãos dadas com a linha do horizonte, compreendo que nada existe para lá do ocidente, nenhum mal, nenhum monstro marinho de entranhas tórridas e instáveis me irá devorar o presente e engolir a inércia relaxante onde aprendi a respirar. O mar é um riacho capaz de amansar as dores desta realidade em que existimos, todos, mesmo aqueles que não sabem que fazem parte deste conforto, mesmo os que não compreendem as palavras com que o universo foi construído, mesmo os que não conseguem escutar as flautas e os sons das ondas, e dos ventos, e da composição onírica das estrelas.
A chuva caiu de manhã enquanto me banhava nessa praia de ondas calmas. O grande mar oceano compôs a sinfonia que eu necessitava para chegar até este momento, lembro-me disso agora… e das meias-cores que a pintaram, os meio sons que a beijaram, e lembro-me de um sossego maravilhoso que pairava por cima de tudo o que ali acontecia, a boiar acima de todas as coisas presentes, inquietas ou tranquilas, e depois dormimos e sossegámos a respiração.
Existe um lugar calmo da cor do ouro que nós, distraidamente, deixámos de reconhecer, e por vezes basta ser capaz de abrir a mão e ver os cinco dedos que a formam a moverem-se, mais reais do que esta inquietação que tanto gostaria de silenciar para lá da linha do horizonte.

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