segunda-feira, 24 de outubro de 2016

26 - AS PALAVRAS SÃO BRINQUEDOS



Ergo-me da cadeira para melhor conseguir escrever, e preciso de tempo para o fazer. Se parar morro, quantas vezes estamos mortos, presos à superfície sobrenatural das coisas imbecis. A civilização inteira é uma imbecilidade sem remédio, sem eira nem beira, um jardim a definhar, desalinhado, modificado, onde as árvores deixaram de crescer. As flores murcharam porque os jardins passaram a ser inúteis e grotescos. Bebo mais um pouco para melhor conseguir escrever, e preciso de tempo para o fazer, e tem de ser de pé, igual à morte das árvores, os bancos e as cadeiras não me servem para compor com espontaneidade, já não me consolam. Extrair uma coisa boa de várias coisas más, mas há dias em que nem de pé consigo contemplar a inutilidade dos quatro cantos do planeta e a futilidade das palavras que componho. Que bom seria se o português não fosse esta língua complicada e pomposa, a simplicidade ilusória dos textos acabaria por se revelar mais terra a terra, menos figurante trágica de um romance de Eça ou Almada, menos Torga, menos Cesário, menos cenário das estrelas, menos palco de distrações anémicas, muito mais feliz.

Depois nasceu o Mago, rei esquecido e encontrado, sobressaltado por tudo o que era esquecimento e recordação. Encontrou a paisagem que lhe pertencia e inventou o canteiro onde plantou as sementes da nova linguagem. Escovou as palavras e usou um pano para lhes dar um novo brilho. A ilusão da simplicidade é do mesmo peso das nuvens, não tem consciência do céu onde vagueia. Os brinquedos tomaram conta do éter e a vida inteira passou em imagens à sua frente. Ele interrogou-se e desconheceu a pessoa que era, passou o tempo inteiro a construir versos em prosa, a interpretar confusamente coisa nenhuma, e nada era simples, tudo se desmanchava do alto de um penhasco num hospital sem paredes, num soalho aguçado sem rede de proteção. A terra nula e suja foi a passagem que o Mago usou para construir a tragédia das suas palavras, em pé, sempre de pé, até ser um quase farrapo incógnito, uma vedeta enlouquecida de um espetáculo rocambolesco. Sem jeito para despedidas, manteve-se fiel nessa incessante busca da simplicidade impossível dos textos, nuvens apenas…

O olhar de quem se interroga é um olhar distante e perturbado.

A desilusão de ser alguém, é importante encontrar esse alguém que somos dentro de nós. Uma vida branca e leve, simples, não silenciosa e simples, tão difícil de recuperar. Simples, tudo deveria ser simples e não religioso, apenas humano, fresco, transmissível por palavras leves carregadas de significados. A noite agora chega tão cedo que atordoa, e arrisco espreitar a penumbra da minha varanda com olhos de gato ao sol, e vou sumir-me até me perder de vez pelas encostas. Agora que perdi os sentidos, vou dormir despreocupado sob uma árvore que não dê sombras, a mais ilógica e simples de todas, e o som do meu sangue de felino aquecer-me-á as palavras novas, bem mais simples que as anteriores, menos portuguesas. Foi difícil acariciar a melodia deste cinzentismo molecular de todos os dias, e a claridade que me chegou foi insuficiente, mais uma vez.

Boceja o gato que sou, fazendo de conta que é feliz a gozar a merecida sesta. Repousa com a cabeça escondida entre as patas e a cauda, menos humano, muito mais real.

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