quarta-feira, 26 de outubro de 2016

27 - UNIVERSO



Ergo-me, e os ruídos do dia estalam-me dentro da cabeça, bruscos, dolorosos, tornam-me o corpo menos etéreo e o pescoço mais quebradiço. O fio invisível que nos prende à vida liga-se ao primeiro vislumbre frouxo da luz da manhã, a cidade espreguiça-se, as circunstâncias abstratas deste novo despertar quebram os silêncios, e avançamos.
Atropelo os chinelos porque sonho ainda…
Prendo os olhos numa cadeira carregada de roupa abandonada, abro a porta para me rever no mesmo espelho de todos os dias, e dou por mim a repetir a mesma rotina debaixo das cores familiares destas paredes. Deixo de saber se esta é a hora e o dia certo para eu estar desperto neste ponto central do único universo que conheço.
Os reflexos da luz adornam o meu acordar e todas as coisas que a ele pertencem, e eu sei lá se existo, ou a cadeira que vejo, ou esta inteira habitação, ou o esquecimento que vou ter deste novo dia praticamente terminado em que eu me intervalei a escorregar pelas impassíveis pontes do tempo. Parti e ninguém me reconheceu, os outros habitantes da metrópole usam o mesmo tipo de máscara para não se sentirem estranhos, tão vazios, mas aqui neste lugar somos todos ilhas sem notícia que mereça a pena, senhores falsos de paisagens mentirosas, estátuas Moai de costas voltadas para a imensidão do mar oceano que é vida nunca conhecida. O universo inteiro é povoado por mascarados que foram trocados à nascença, e ninguém suspeita. A minha máscara já não é tão pesada, vejo-me ao espelho e reconheço quem fui.
 O coração bate no peito, as mãos seguem à risca a coreografia de anteontem, do mês passado, dos anos que já esqueci e que num instante voaram. O universo é o que se passa na minha rua, o que nelas vislumbro, as luzes e cores parecidas com as que somos, as frases esquecidas que surgem a cada esquina para nos estender a mão, à espera que eu me faça homem sem máscara. As palavras surgem, repentinas, e a cegueira que me move diariamente fica alterada por essa espécie de exaltação, e o engano do universo real é permutado por essas maravilhosas pérolas anónimas que procuro decifrar. As lógicas outrora desconhecidas ganham novo fulgor, e o ator deslumbra-se, deixa cair a máscara e reconhece-se mais inteiro, menos falso, o palco metafísico de uma nova sensação de mim.
O universo paralelo é um somatório aparente de ilusões, mas este é o universo onde os enganos e as loucuras enchem os tempos de verdade com uma não-ficção caótica que eu amo e estimo acima de todas as outras, acima de mim próprio, acima do alucinante erro em que acreditamos, acima da extensão dos sóis e das luas… é nele que prefiro não acordar.
Falso, estou mascarado nesta individualidade, e caminho cansado, o sono a pesar, realmente, e os erros acumulados tão difíceis de descrever, o que será que existe… esta luz? Esta sala onde medito? A alma que me fala, ou a que me ajuda a escutar? A ponte onde caminho, existe verdadeiramente? Talvez seja chegada a hora de dormir. É tarde, a meia-noite desapareceu, é já uma da manhã, por agora ainda estou acordado, mas é difícil viajar sonolento entre as dunas da madrugada e os oásis refrescantes do novo amanhecer.
Memória, palavras, acordei hoje neste ontem revigorado que já passou.
Os móveis encolhem, as paredes diminuem cada vez mais os espaços claustrofóbicos deste universo adormecido.
Foi um momento.

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