Ergo-me, e os ruídos do
dia estalam-me dentro da cabeça, bruscos, dolorosos, tornam-me o corpo menos
etéreo e o pescoço mais quebradiço. O fio invisível que nos prende à vida
liga-se ao primeiro vislumbre frouxo da luz da manhã, a cidade espreguiça-se,
as circunstâncias abstratas deste novo despertar quebram os silêncios, e
avançamos.
Atropelo os chinelos
porque sonho ainda…
Prendo os olhos numa
cadeira carregada de roupa abandonada, abro a porta para me rever no mesmo
espelho de todos os dias, e dou por mim a repetir a mesma rotina debaixo das
cores familiares destas paredes. Deixo de saber se esta é a hora e o dia certo
para eu estar desperto neste ponto central do único universo que conheço.
Os reflexos da luz
adornam o meu acordar e todas as coisas que a ele pertencem, e eu sei lá se
existo, ou a cadeira que vejo, ou esta inteira habitação, ou o esquecimento que
vou ter deste novo dia praticamente terminado em que eu me intervalei a escorregar
pelas impassíveis pontes do tempo. Parti e ninguém me reconheceu, os outros
habitantes da metrópole usam o mesmo tipo de máscara para não se sentirem
estranhos, tão vazios, mas aqui neste lugar somos todos ilhas sem notícia que
mereça a pena, senhores falsos de paisagens mentirosas, estátuas Moai de costas
voltadas para a imensidão do mar oceano que é vida nunca conhecida. O universo
inteiro é povoado por mascarados que foram trocados à nascença, e ninguém
suspeita. A minha máscara já não é tão pesada, vejo-me ao espelho e reconheço
quem fui.
O coração bate no peito, as mãos seguem à
risca a coreografia de anteontem, do mês passado, dos anos que já esqueci e que
num instante voaram. O universo é o que se passa na minha rua, o que nelas
vislumbro, as luzes e cores parecidas com as que somos, as frases esquecidas
que surgem a cada esquina para nos estender a mão, à espera que eu me faça
homem sem máscara. As palavras surgem, repentinas, e a cegueira que me move
diariamente fica alterada por essa espécie de exaltação, e o engano do universo
real é permutado por essas maravilhosas pérolas anónimas que procuro decifrar.
As lógicas outrora desconhecidas ganham novo fulgor, e o ator deslumbra-se,
deixa cair a máscara e reconhece-se mais inteiro, menos falso, o palco
metafísico de uma nova sensação de mim.
O universo paralelo é
um somatório aparente de ilusões, mas este é o universo onde os enganos e as
loucuras enchem os tempos de verdade com uma não-ficção caótica que eu amo e
estimo acima de todas as outras, acima de mim próprio, acima do alucinante erro
em que acreditamos, acima da extensão dos sóis e das luas… é nele que prefiro
não acordar.
Falso, estou mascarado
nesta individualidade, e caminho cansado, o sono a pesar, realmente, e os erros
acumulados tão difíceis de descrever, o que será que existe… esta luz? Esta
sala onde medito? A alma que me fala, ou a que me ajuda a escutar? A ponte onde
caminho, existe verdadeiramente? Talvez seja chegada a hora de dormir. É tarde,
a meia-noite desapareceu, é já uma da manhã, por agora ainda estou acordado,
mas é difícil viajar sonolento entre as dunas da madrugada e os oásis refrescantes
do novo amanhecer.
Memória, palavras,
acordei hoje neste ontem revigorado que já passou.
Os móveis encolhem, as
paredes diminuem cada vez mais os espaços claustrofóbicos deste universo
adormecido.
Foi um momento.
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