quarta-feira, 15 de março de 2017

56 - JOGO GANHO, JOGO PERDIDO



Escrevo, amante de sonhos e devaneios, sinto ao escrever a espessura crescente da imbecilidade da espécie humana à qual pertenço, onde homens vulgares se engrinaldam, sem humildade, pedindo às massas enfeitiçadas que os sigam, com discursos pós-pós-modernos de profunda vacuidade e ignorância. Apelam às sensações mais primárias com informações falsas, caluniosas, indefinidas, geram e gerem o medo e a malícia, enganam e contradizem-se, rugem mensagens mentirosas com a arrogância de semideuses, adoram o protagonismo e a decadência, amam o caos e a cegueira que procuram perpetuar e ameaçam despudoradamente todos os que os ousam contradizer. Escrevo estas palavras para as expor nesta montra que ninguém vê, e se alguém as visse de que serviriam as mensagens metafóricas, perdidas na sombra, meros vestígios escondidos de extinta luz.

Somos mais do que alguma vez fomos, animais bípedes inteligentes que anseiam sobreviver ao tédio perpétuo que nos enfraquece. Somos iguais, somos sempre diferentes, e desola-nos a luz que desconhecemos e que paira, brilhante, por cima das cabeças dos outros. Esbarramos em muros que nos entretivemos a construir, que depois acabámos por destruir, e que nos entretivemos a reconstruir, em outros lugares, com outras intenções, sempre com a instintiva e primária vontade de nos separar do outro que não desejamos conhecer, nem acolher, nem abraçar, nem entender… os outros serão sempre os seres selvagens que não queremos deste lado onde vivemos, o melhor de todos os lados, obviamente.

É com emoção que digo saber para onde caminhamos, e que este jogo perigoso terá sempre o mesmo fim, o mesmo negro final. Somos náufragos nesta jangada única onde nos afogamos, mas onde julgamos estar a navegar por mares dourados de tonalidades violeta e anil.

Imagens reais bem conhecidas, muito expressivas e violentas, chegam-me da memória da história que omitimos e esquecemos. O meu pensamento dispersa-se em figurativas sensações difusas, talvez tenha chegado o tempo de me substituírem a alma por uma tapeçaria bordada à mão com fios dourados. Estou cansado deste ritmo incerto da nossa nova história em que os bárbaros desabrocham em jardins de sangue, futilidade, promiscuidade e loucura.

Condeno estas imagens que me atormentam, e repudio os meus pensamentos catastróficos e niilistas. Deveria dar-me menos a este trabalho para erguer de mim apenas o brilho de um sol clássico e sóbrio que me aquecesse, ao invés destes extraviados repentes absurdos e sem nexo aos quais sucumbo nesta escrita que aqui se põe. Deveria preocupar-me em escrever poemas mágicos com estas palavras que invento e que sei lá como é que nascem. Afogar-me na tinta azul ou negra das canetas, traçar conjeturas literárias bem mais emocionadas e apetecíveis, esquecer-me de vez das causas religiosas, políticas e económicas, antes descarnar os detalhes da visão dos sonhos que esculpem com precisão os variados encontros com a nossa consciência, e espantar-me com tudo o que seja de pasmar!

O Mago sentiu excessivamente, constatou e constatou-o, afastou-se dos homens, gelou toda a sua superfície de convivência e elevou, com despropósito, o sofrimento que vem de sentir. O Mago sonhador foi incapaz de evitar o sofrimento, antes aprendeu a ir buscar à dor o prazer, e educou-se até a senti-la falsamente, falsa era a dor que sentia, tão falsa que, certamente, seria dor inteira e verdadeira a que falsamente dizia sentir.

- Dias inteiros havia passados somente nisso. Tinha um prazer qualquer, um “je ne sais quoi” que experienciei exageradamente, artificialmente, e que caminhos eu segui para conseguir criar o meu dicionário de análise da dor… que longos caminhos foram esses que eu percorri.

Mago, arquiteto construtor de sensações sutilizadas através da inteligência, dor que sentias imediatamente ( Tu próprio o dizias ), analisada até à secura e enterrada em Ti até ao auge de ser dor… e só então Te parava a vida e a Arte se rojava aos pés. Este Teu segundo passo era de uma intensidade tão grande que só me pode causar a inveja profunda que sinto ao olhar para Ti e para as palavras que lavravas como se fossem Tuas. E escrevemos, talvez, pela mesma razão plausível, porque este é o fim, o requinte supremo temperamentalmente ilógico da nossa cultura de estados de alma. Assim que leio (est)as palavras inteiras que talvez de igual maneira tivessem nascido de Ti, acredito nelas mais ainda, acredito no máximo poder do puro sonho, e não finjo que ouço, pois se também Tu não finjias que os lias, quem sou eu para fingir…

A obra que se faz, ao menos fica feita, será pobre, conforme afirmavas, mas ao menos fica feita, e existe, tal e qual a vida, um tédio que antecipa apenas mais tédio – grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos…

- Falas comigo, Mago? Fala comigo! Neste meu mundo, nosso mundo, cresce o desalento e o desespero, precisamos urgentemente de Magos como Tu! As palavras que escreveste são únicas, impérios inteiros que afirmavas serem nulos e nada valerem. Porque escrevias essas falsidades, e porque dizias que perdias o Teu tempo ao fazê-lo e que apenas o ganhavas na ilusão desfeita de ter valido a pena fazê-lo? Fala comigo! Faz-me esse favor, ajuda-me a compreender este vazio que se propaga por todo o lado com o mesmo vigor de outrora, sem regras e sem adversários à altura… que falta fazes hoje a este mundo perdido e à deriva onde todos vomitam opiniões talhadas a preceito sem valor nenhum.

- As palavras nascem, as palavras fogem ao nascer nessa liberdade única que ninguém consegue explicar, frases que nunca escrevi, paisagens que ficaram por descrever, ainda vivo, ainda sonho, dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstrato em eu pensar e elas serem, E hoje, que queres tu de mim se fui apenas génio mais que nos sonhos e menos que na vida?

- Mago, deixa-te de mais falsidades e contradições, o mundo precisa de Ti, precisa das Tuas palavras… diz-me como nascem as palavras!

- Guia-te pelo instinto dos gatos! Aproveito para te recordar aquilo que outrora entendi: o mundo no qual nascemos sofre de renúncia e de violência – da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nos dias de agora, esses em que vives, deverá doer ainda mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida, e como eu nada sabia, escrevia e, tal como tu fazes agora, usava os grandes termos da Verdade alheia: conforme as exigências da emoção. Não ouses escrever mais do que algumas palavras, eu mesmo, no pouco que escrevi, fui imperfeito também…

A vida é feia porque é toda fim e propósitos e intenções.



Meu amor, amor meu, afinal todas as palavras, as palavras todas, mais não são que um imenso absurdo, imperfeito absurdo que me entretenho a aqui escrever em liberdade. E fingir é amar!

Mais uma vez, foi o Mago quem ensinou…

FIM

segunda-feira, 13 de março de 2017

55 - INDIFERENÇA



Quanto esforço, quanto tempo perdido, quanta incerteza a cada estado de alma, dolorosa incerteza possuir esta certeza absoluta de escrevermos mal. Esforço inglório, realização inferior e grotesca dramatização. Eu ouço-Te Mago, e agora conheço a Tua tragédia. Restam as crianças porque dizem como sentem e não como se deve sentir, definem sem rodeios toda a sua literatura.
Dizer, saber dizer, saber como dizer e o que dizer, saber existir pela voz da escrita, poder voltar a ser uma criança à beira de chorar, a mesma criança literária que tão bem definiu a sua espiral.

Tudo isto é quanto a vida vale.

O que resta são bichos, gente a remexer-se como bichos quando se levanta uma pedra, que bela esta Tua imagem no meio de tanto desassossego.
- Exato, devolveste-me a lembrança desse Pedregulho abstrato do céu azul sem sentido!

Eu e o Mago sorrimos debaixo deste céu cinzento sem sentido, salvação ilusória e momentânea da sordidez de sermos ou já não sermos… pois se apenas na arte gozamos e entendemos tudo que nos delicia sem que seja ( de verdade ) nosso – “o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.”
Eu e o Mago sorrimos, como dois patetas, debaixo deste céu cinzento sem sentido, salvação ilusória e momentânea da sordidez de sermos ou já não sermos. Eu e o Mago ainda lá estamos a sorrir, como dois perfeitos patetas.
- Tu, que sabias que na vida transitória nada eras, e escreveste um dia que podias gozar a visão do futuro ao leres essa página, pois efetivamente a escreveste, e podias orgulhar-te, como de um filho, da fama que terias, porque, ao menos, terias com que a ter.
- Sim, e também escrevi que a glória não é uma medalha, mas uma moeda, e para os valores maiores não há moedas: são de papel e esse valor é sempre pouco.

Para que nascem as palavras? Será mais sensato perguntar para que nascem e não como nascem. Sim, julgo ser mais correto colocar a questão desta maneira, pois se apenas aos que já não estão sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
O meu novo sonho é poder vir a ser esse incompreendedor que o Mago referiu no meio das suas palavras.

Regressei aqui, a este cinzento menos pálido da manhã. Aquecido por um sol menos envergonhado, engreno no trabalho do costume sem companhia, só, solitário, pintado pelas cores alegres da música jazz que passa na rádio. Regressei a este futuro do meu Mago, o mesmo futuro em que Ele pensava, com deleite triste, existir alguém que o pudesse “compreender”, essa gente seriam os seus, a família verdadeira onde nasceria e seria amado, família que só o pôde compreender enquanto efigie e quando a afeição já não Lhe compensava, pois se morreu…

- Diz-me como nascem as palavras, nesta manhã entardecida.

- Sim, nesta manhã em que nos vemos, a hora da dolência aproxima-se a passos largos, mas foi franca e proveitosa a conversa até este instante em que a inconsciência nos separa e a realidade volta a roçar em nossos corpos inúteis.

Até breve,
… até já!

quinta-feira, 9 de março de 2017

54 - POR ESTE RIO ACIMA



Este é um mundo desolado e sem propósito que nos entretemos a descrever. Consolam-me as palavras, se me faltassem dormiria bem mais inquieto e, contudo, não durmo, deito-me e levanto-me desmaiado neste registo de mim, uma propriedade com fronteiras de figura, um livro constantemente inacabado escrito em parte alguma.

Abandono-me em frases por terminar, avanço em direção a elas analisando os precipícios do sistema, a gramática vulgar que dita as leis inconscientes que erijo, obscuras, confusas, expressões sem concordância, sem regras absolutas, sem divisões, e as formas irregulares separam a matéria da antimatéria divina que ainda não foi criada, mas que exerce já uma atração fatídica convertendo o imaterial buraco negro na suprema força que tudo cria ao invés de sugar e destruir. Fraca filosofia, pequena e fraca filosofia esta das palavras que nada dizem ao tentar dizer.

Errei, terei errado quando escrevi tudo o que já escrevi? Não, não terei errado ao escrever tudo o que já escrevi, terei errado se não escrever tudo aquilo que ainda não escrevi, mesmo se com erros, mesmo se só com erros e falhanços continuar a construir a essência da minha literatura. Este meu reino não é visitado por fadas ou elfos, por gigantes, gnomos ou feiticeiros que distribuem feitiços e evocam os poderosos senhores de florestas distantes, este meu reino nem sequer é povoado por humanas formas de gente. O tabuleiro invisível das palavras é leve, possuí cheiros, cores, sons, é nele que passam a existir as minhas memórias que depois transformo e me transformam sempre que a elas ouso regressar.

Será mais simples começar a obra ou acabá-la?

Será bem mais difícil dar-lhe um começo ou um final, e que recordações perdurarão para além das palavras intermédias de todos os romances?

Distraio-me, ando constantemente distraído com qualquer coisa e o meu instinto adia o restauro deste edifício de palavras. Será que também fico desolado ao terminar mais uma obra? Cedo, suspendo a alma mais do que lhe obedeço, observo o manto que cobre os telhados de ignorância e a eles subo para melhor me interromper.

- Mago, também tu conversavas sozinho para formar as palavras do teu livro, e sentias de repente uma necessidade de falar com outra pessoa. Depois, dirigias-te à luz que pairava sobre os telhados, e eu vejo nesta luz de agora a tua figura a observar os telhados de outrora, aqueles que te pareciam molhados por a terem de lado, e onde buscavas inspiração… Eu dirigi-me a esta luz citadina de hoje, mais real do que suposta, para me esquecer das coisas inúteis por mais uns instantes.

- Porque escreves, se não escreves melhor? Mas que seria de ti se não escrevesses o que consegues escrever, por inferior a ti mesmo que nisso sejas?

Meu único vício, aquele que o Mago desprezava e onde sempre viveu.

- Recorda, se já nesse tempo afirmei que o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito, e de novo te recordo que fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Porque escrevemos então? Escrevemos para cumprir um castigo, e o maior castigo é sabermos que o que escrevemos resulta inteiramente fútil, falhado e incerto…

E dizias Tu poder vir a ter saudades dessa vida incerta em que mal escrevias e não publicavas, ter saudades de quando eras fútil, frusto e imperfeito, ter saudades da hipótese de poder ter um dia saudades.

Só, neste vício que me atormenta e desprezo como quem ama.

Escrevo, tantas vezes escrevo as palavras para não ter de as dizer.

Devaneio, é tudo um devaneio que assim verbalizo em palavras que sonho em silêncio e solidão, e depois falo contigo, sei que falo contigo mesmo que nunca fale contigo, mesmo que os meus humildes átomos me façam sentir a falsidade das nossas conversas absurdas, imateriais…

 Ao fundo de uma íngreme descida na autoestrada, uma viatura parou depois de ter danificado a suspensão dianteira. Travei, passei pela esquerda do carro parado, sem demoras, quase sem dar conta da cor ou da marca ou da pessoa que o conduzia, só me apercebi dos graves danos na suspensão dianteira do lado direito, completamente partida, mas a fila era grande e o atraso também. Encontrei-me nesse mundo pelas quatro e trinta e sete da madrugada, sem fazer ideia do carro que conduzia ou para onde me dirigia, qual a cor dos estofos ou quem era a pessoa que seguia comigo sentada no banco traseiro. Embalado pela velocidade a que seguia, recordo-me vagamente da paisagem onde o Cristo-rei e a ponte me sorriram, e eu agora sou capaz de jurar que era o Mago quem estava sentado nesse banco a olhar a mesma paisagem pela janela, com um chapéu de chuva entre as pernas, apertado nos joelhos, as mãos brancas apoiadas na curvatura perfeita da pega negra do chapéu, feita de cabedal e cosida a rigor. O Mago nunca viu a ponte nem o Cristo-Rei, mas ali estávamos nós, a horas pasmadas, a seguir em direção a Almada, embalados por um sonho aprazível.

- Encontrei-me nesse mundo certo dia, perguntei onde estava e todos me enganaram, todos me contradiziam. Não sabia de onde viera, mais uma vez, estava em cena e não sabia o papel que tu dizias logo, sem o saber também. Estava vestido de pajem, e não me deram a rainha, deram-me esse improvável condutor a quem tinha uma mensagem para entregar. Dei-te o papel que estava em branco, mas tu não te riste, ao contrário dos outros a quem entreguei a mesma mensagem em idênticas folhas sem palavras. Todos os papéis estão brancos…

- Ou todos os papéis estão em branco até que nele se possam adivinhar todas as mensagens? Não será assim que nascem as palavras?

Sentados numa pedra, eu e o Mago virados para o Tejo com Lisboa ao fundo, entretidos a construir barcos de papel com esta mentira que hoje me foi servida a horas impróprias. Ninguém irá acreditar em mim, ninguém quererá acreditar, e nem mesmo o Tejo será capaz de provar esta nossa verdade.

Rimos os dois desta verdade em que ninguém irá acreditar.

quinta-feira, 2 de março de 2017

53 - A BEIRA DA ESTRADA ONDE MORRI



As palavras livres deveriam ser capazes de corromper as leis rígidas que as oprimem, pairar sem pensar em ritmos poéticos, em cores, em formas, em estéticas de modas ocasionais que as transfiguram em coisa sem graça, sem jeito, em coisas indecisas menos nobres, bem mais servis. Eternas são as palavras, ainda mais eternas são as palavras livres, são de uma imortalidade distinta e incomparável, nelas se explicam as engenharias de todos os sistemas e a perfeição contida em todas as coisas visíveis e invisíveis. As ideias dos homens que foram e dos que serão, os luares esplendorosos e o nascimento de estrelas, de galáxias e de universos inteiros, os vários conceitos de infinito, o choro de uma criança, o dia primeiro em que o rei dos reis viveu, o sentimento todo deste Mago que me enche as manhãs, as tardes e as noites com tantas palavras que ainda não sei como nascem, mas das quais já sinto saudades.

Que poderosas são as palavras livres, tão difíceis de encontrar…

Soltas de todas as amarras, invadem os espaços perdidos entre os tempos de todas as eras, pairam como um manto régio que tudo cobre e onde pertencemos, descritos por elas com uma clareza desconcertante.

Simples é a compreensão de todos os fenómenos, as palavras livres descrevem em sonhos os percursos exatamente como os sentimos, demasiado familiares, quantas vezes dolorosos e penosos, tantas vezes desassossegados. Leio estes desejos porque os sinto e assim os descrevo, e escrevo… tudo o que vejo, o que sonho, o que não sei se existe dentro e fora de mim, em palavras de outros, principalmente nas palavras desse outro com quem estes dias me habituei a conversar, o Mago, o meu Mago, o Mago de todos e de ninguém, o maior de todos os pensadores, demasiado familiar para me causar incómodo ao vê-lo chegar em forma de fantasma sonolento, com o seu pequeno bigode mal aparado, hoje com este aspeto de quem passou a noite ao relento a tentar explicar-me o inexplicável, qual a razão de ainda estarmos aqui e não em qualquer outro lugar onde deveríamos acontecer.

Mistério é a clareza com que ele se expressa e estreita o espaço infinito que nos separa, mistério é a familiaridade deste processo e a surpresa que me provocam as suas revelações. A meio da noite acordei sobressaltado por mais um dos seus esclarecimentos, e li em imagens impossíveis aquilo que sei não ter acontecido, mas que aconteceu. Colhi da leitura dessas palavras onde pertenci novidades avassaladoras acerca da história de nossas vidas. Acordei alagado em suor a escutar vozes que já não existem, em espaços que já não são, mas onde vivi. Palavras obscuras seguiram-me pelo corredor até desaparecerem, li-as e fiquei liberto do ser pouco corajoso que as escutou, em primeira mão, pela voz rouca e compassada do Mago que esta madrugada me visitou. A liberdade das palavras dos sonhos é feita de uma objetividade que pesa mais do que a própria realidade. Caminhei jovem nessa estrada onde o inconcebível ocorreu e acordei hoje, de madrugada, vindo diretamente de um espaço e do tempo onde a tragédia aconteceu. Confesso ter ficado sem voz e quase sem pinga de sangue. Perdi a noção do externo de mim, as sombras no teto do quarto e no chão quieto acabaram de vez com a paz do meu descanso, mas tinha de ser assim. Li as palavras do Mago naquela sua voz muda e rouca, consegui escutá-lo e li-o desta maneira inquieta que tanto me perturbou. Morremos todos nesse trágico acidente! Passados todos estes anos a criança que voou por sobre a estrada e pelos céus do abismo que a viatura abraçou, acordou nos lençóis de agora, a mesma pessoa desse dia mas com os átomos de hoje, exatamente como fui, exatamente como sou, revelação lida como um trecho de uma prosa rebuscada dessas coisas demasiado familiares, demasiado palavras conhecidas, uma solidez escura de coisa perpétua e nunca acabada que de quando em vez se mostra, sem aviso prévio, nestes clarões construídos por palavras invisíveis declamadas pela voz do Mago poeta.

Fico exausto com estas revelações.

Leio-as, adquiro a objetividade possível e tento voltar a adormecer.

Pesa-me a clareza deste mundo e dos seus estranhos caminhos.

Grandes são os mistérios contidos neste manto régio sagrado que pisamos e contemplamos. Se leio, é porque sou, se te escuto, é porque estou, se escrevo, é porque necessito das palavras para sobreviver, para ser e para estar, para tentar ser livre e ler como quem passa e se sente suficientemente nobre para ver e dormir inquieto até voltar a acordar, de novo, num outro tempo e num outro leito. Serei o mesmo, mas já outro, composto por átomos desconhecidos, mas que são já, também, essa outra parte de mim.