Este é um mundo desolado
e sem propósito que nos entretemos a descrever. Consolam-me as palavras, se me
faltassem dormiria bem mais inquieto e, contudo, não durmo, deito-me e
levanto-me desmaiado neste registo de mim, uma propriedade com fronteiras de figura,
um livro constantemente inacabado escrito em parte alguma.
Abandono-me em frases por
terminar, avanço em direção a elas analisando os precipícios do sistema, a
gramática vulgar que dita as leis inconscientes que erijo, obscuras, confusas,
expressões sem concordância, sem regras absolutas, sem divisões, e as formas
irregulares separam a matéria da antimatéria divina que ainda não foi criada,
mas que exerce já uma atração fatídica convertendo o imaterial buraco negro na
suprema força que tudo cria ao invés de sugar e destruir. Fraca filosofia,
pequena e fraca filosofia esta das palavras que nada dizem ao tentar dizer.
Errei, terei errado
quando escrevi tudo o que já escrevi? Não, não terei errado ao escrever tudo o
que já escrevi, terei errado se não escrever tudo aquilo que ainda não escrevi,
mesmo se com erros, mesmo se só com erros e falhanços continuar a construir a
essência da minha literatura. Este meu reino não é visitado por fadas ou elfos,
por gigantes, gnomos ou feiticeiros que distribuem feitiços e evocam os poderosos
senhores de florestas distantes, este meu reino nem sequer é povoado por
humanas formas de gente. O tabuleiro invisível das palavras é leve, possuí
cheiros, cores, sons, é nele que passam a existir as minhas memórias que depois
transformo e me transformam sempre que a elas ouso regressar.
Será mais simples começar
a obra ou acabá-la?
Será bem mais difícil
dar-lhe um começo ou um final, e que recordações perdurarão para além das
palavras intermédias de todos os romances?
Distraio-me, ando
constantemente distraído com qualquer coisa e o meu instinto adia o restauro
deste edifício de palavras. Será que também fico desolado ao terminar mais uma
obra? Cedo, suspendo a alma mais do que lhe obedeço, observo o manto que cobre
os telhados de ignorância e a eles subo para melhor me interromper.
- Mago, também tu
conversavas sozinho para formar as palavras do teu livro, e sentias de repente
uma necessidade de falar com outra pessoa. Depois, dirigias-te à luz que
pairava sobre os telhados, e eu vejo nesta luz de agora a tua figura a observar
os telhados de outrora, aqueles que te pareciam molhados por a terem de lado, e
onde buscavas inspiração… Eu dirigi-me a esta luz citadina de hoje, mais real
do que suposta, para me esquecer das coisas inúteis por mais uns instantes.
- Porque escreves, se não escreves melhor? Mas que seria de ti se não
escrevesses o que consegues escrever, por inferior a ti mesmo que nisso sejas?
Meu único vício, aquele
que o Mago desprezava e onde sempre viveu.
- Recorda, se já nesse tempo afirmei que o meio moderno torna impossível
o aparecimento de qualidades de construção no espírito, e de novo te recordo
que fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da
alma. Porque escrevemos então? Escrevemos para cumprir um castigo, e o maior
castigo é sabermos que o que escrevemos resulta inteiramente fútil, falhado e
incerto…
E dizias Tu poder vir a
ter saudades dessa vida incerta em que mal escrevias e não publicavas, ter
saudades de quando eras fútil, frusto e imperfeito, ter saudades da hipótese de
poder ter um dia saudades.
Só, neste vício que me
atormenta e desprezo como quem ama.
Escrevo, tantas vezes escrevo
as palavras para não ter de as dizer.
Devaneio, é tudo um
devaneio que assim verbalizo em palavras que sonho em silêncio e solidão, e
depois falo contigo, sei que falo contigo mesmo que nunca fale contigo, mesmo
que os meus humildes átomos me façam sentir a falsidade das nossas conversas
absurdas, imateriais…
Ao fundo de uma íngreme descida na
autoestrada, uma viatura parou depois de ter danificado a suspensão dianteira.
Travei, passei pela esquerda do carro parado, sem demoras, quase sem dar conta
da cor ou da marca ou da pessoa que o conduzia, só me apercebi dos graves danos
na suspensão dianteira do lado direito, completamente partida, mas a fila era
grande e o atraso também. Encontrei-me nesse mundo pelas quatro e trinta e sete
da madrugada, sem fazer ideia do carro que conduzia ou para onde me dirigia,
qual a cor dos estofos ou quem era a pessoa que seguia comigo sentada no banco
traseiro. Embalado pela velocidade a que seguia, recordo-me vagamente da
paisagem onde o Cristo-rei e a ponte me sorriram, e eu agora sou capaz de jurar
que era o Mago quem estava sentado nesse banco a olhar a mesma paisagem pela
janela, com um chapéu de chuva entre as pernas, apertado nos joelhos, as mãos
brancas apoiadas na curvatura perfeita da pega negra do chapéu, feita de
cabedal e cosida a rigor. O Mago nunca viu a ponte nem o Cristo-Rei, mas ali
estávamos nós, a horas pasmadas, a seguir em direção a Almada, embalados por um
sonho aprazível.
- Encontrei-me nesse mundo certo dia, perguntei onde estava e todos me
enganaram, todos me contradiziam. Não sabia de onde viera, mais uma vez, estava
em cena e não sabia o papel que tu dizias logo, sem o saber também. Estava
vestido de pajem, e não me deram a rainha, deram-me esse improvável condutor a
quem tinha uma mensagem para entregar. Dei-te o papel que estava em branco, mas
tu não te riste, ao contrário dos outros a quem entreguei a mesma mensagem em
idênticas folhas sem palavras. Todos os papéis estão brancos…
-
Ou todos os papéis estão
em branco até que nele se possam adivinhar todas as mensagens? Não será assim
que nascem as palavras?
Sentados numa pedra, eu e
o Mago virados para o Tejo com Lisboa ao fundo, entretidos a construir barcos
de papel com esta mentira que hoje me foi servida a horas impróprias. Ninguém
irá acreditar em mim, ninguém quererá acreditar, e nem mesmo o Tejo será capaz
de provar esta nossa verdade.
Rimos os dois desta
verdade em que ninguém irá acreditar.
Sem comentários:
Enviar um comentário