quinta-feira, 9 de março de 2017

54 - POR ESTE RIO ACIMA



Este é um mundo desolado e sem propósito que nos entretemos a descrever. Consolam-me as palavras, se me faltassem dormiria bem mais inquieto e, contudo, não durmo, deito-me e levanto-me desmaiado neste registo de mim, uma propriedade com fronteiras de figura, um livro constantemente inacabado escrito em parte alguma.

Abandono-me em frases por terminar, avanço em direção a elas analisando os precipícios do sistema, a gramática vulgar que dita as leis inconscientes que erijo, obscuras, confusas, expressões sem concordância, sem regras absolutas, sem divisões, e as formas irregulares separam a matéria da antimatéria divina que ainda não foi criada, mas que exerce já uma atração fatídica convertendo o imaterial buraco negro na suprema força que tudo cria ao invés de sugar e destruir. Fraca filosofia, pequena e fraca filosofia esta das palavras que nada dizem ao tentar dizer.

Errei, terei errado quando escrevi tudo o que já escrevi? Não, não terei errado ao escrever tudo o que já escrevi, terei errado se não escrever tudo aquilo que ainda não escrevi, mesmo se com erros, mesmo se só com erros e falhanços continuar a construir a essência da minha literatura. Este meu reino não é visitado por fadas ou elfos, por gigantes, gnomos ou feiticeiros que distribuem feitiços e evocam os poderosos senhores de florestas distantes, este meu reino nem sequer é povoado por humanas formas de gente. O tabuleiro invisível das palavras é leve, possuí cheiros, cores, sons, é nele que passam a existir as minhas memórias que depois transformo e me transformam sempre que a elas ouso regressar.

Será mais simples começar a obra ou acabá-la?

Será bem mais difícil dar-lhe um começo ou um final, e que recordações perdurarão para além das palavras intermédias de todos os romances?

Distraio-me, ando constantemente distraído com qualquer coisa e o meu instinto adia o restauro deste edifício de palavras. Será que também fico desolado ao terminar mais uma obra? Cedo, suspendo a alma mais do que lhe obedeço, observo o manto que cobre os telhados de ignorância e a eles subo para melhor me interromper.

- Mago, também tu conversavas sozinho para formar as palavras do teu livro, e sentias de repente uma necessidade de falar com outra pessoa. Depois, dirigias-te à luz que pairava sobre os telhados, e eu vejo nesta luz de agora a tua figura a observar os telhados de outrora, aqueles que te pareciam molhados por a terem de lado, e onde buscavas inspiração… Eu dirigi-me a esta luz citadina de hoje, mais real do que suposta, para me esquecer das coisas inúteis por mais uns instantes.

- Porque escreves, se não escreves melhor? Mas que seria de ti se não escrevesses o que consegues escrever, por inferior a ti mesmo que nisso sejas?

Meu único vício, aquele que o Mago desprezava e onde sempre viveu.

- Recorda, se já nesse tempo afirmei que o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito, e de novo te recordo que fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Porque escrevemos então? Escrevemos para cumprir um castigo, e o maior castigo é sabermos que o que escrevemos resulta inteiramente fútil, falhado e incerto…

E dizias Tu poder vir a ter saudades dessa vida incerta em que mal escrevias e não publicavas, ter saudades de quando eras fútil, frusto e imperfeito, ter saudades da hipótese de poder ter um dia saudades.

Só, neste vício que me atormenta e desprezo como quem ama.

Escrevo, tantas vezes escrevo as palavras para não ter de as dizer.

Devaneio, é tudo um devaneio que assim verbalizo em palavras que sonho em silêncio e solidão, e depois falo contigo, sei que falo contigo mesmo que nunca fale contigo, mesmo que os meus humildes átomos me façam sentir a falsidade das nossas conversas absurdas, imateriais…

 Ao fundo de uma íngreme descida na autoestrada, uma viatura parou depois de ter danificado a suspensão dianteira. Travei, passei pela esquerda do carro parado, sem demoras, quase sem dar conta da cor ou da marca ou da pessoa que o conduzia, só me apercebi dos graves danos na suspensão dianteira do lado direito, completamente partida, mas a fila era grande e o atraso também. Encontrei-me nesse mundo pelas quatro e trinta e sete da madrugada, sem fazer ideia do carro que conduzia ou para onde me dirigia, qual a cor dos estofos ou quem era a pessoa que seguia comigo sentada no banco traseiro. Embalado pela velocidade a que seguia, recordo-me vagamente da paisagem onde o Cristo-rei e a ponte me sorriram, e eu agora sou capaz de jurar que era o Mago quem estava sentado nesse banco a olhar a mesma paisagem pela janela, com um chapéu de chuva entre as pernas, apertado nos joelhos, as mãos brancas apoiadas na curvatura perfeita da pega negra do chapéu, feita de cabedal e cosida a rigor. O Mago nunca viu a ponte nem o Cristo-Rei, mas ali estávamos nós, a horas pasmadas, a seguir em direção a Almada, embalados por um sonho aprazível.

- Encontrei-me nesse mundo certo dia, perguntei onde estava e todos me enganaram, todos me contradiziam. Não sabia de onde viera, mais uma vez, estava em cena e não sabia o papel que tu dizias logo, sem o saber também. Estava vestido de pajem, e não me deram a rainha, deram-me esse improvável condutor a quem tinha uma mensagem para entregar. Dei-te o papel que estava em branco, mas tu não te riste, ao contrário dos outros a quem entreguei a mesma mensagem em idênticas folhas sem palavras. Todos os papéis estão brancos…

- Ou todos os papéis estão em branco até que nele se possam adivinhar todas as mensagens? Não será assim que nascem as palavras?

Sentados numa pedra, eu e o Mago virados para o Tejo com Lisboa ao fundo, entretidos a construir barcos de papel com esta mentira que hoje me foi servida a horas impróprias. Ninguém irá acreditar em mim, ninguém quererá acreditar, e nem mesmo o Tejo será capaz de provar esta nossa verdade.

Rimos os dois desta verdade em que ninguém irá acreditar.

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