segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

52 - QUAL É A COR DO TEU CORAÇÃO



O melhor de teu coração são os sonhos que nele habitam, pois de monotonia não se constroem sonhos e assim me prendo às imagens puras dessas manifestações e dos conceitos que nelas descubro. Amo o indefinido e a fantasia e a vida artificial de que sinto falta como de um sonho puro e perfeito sem nenhuma relação com a realidade. Por que razão conversamos tanto sobre assuntos circunstanciais onde, com languidez, nos demoramos? Porque razão não obedecemos à vontade de nossos corações de cores idênticas e nos entregamos um ao outro na única verdadeira conversa que deveríamos ter? Não possuo resposta, suponho imaginar a microscópica razão para que tal nunca aconteça, e analiso interiormente todos os aspetos científicos, os contornos químicos, psíquicos e psicológicos desta intricada tessitura da vida inexistente de nós. Somos tão reais como uma qualquer figura de um romance, mais reais do que todas as artes ou a mistura delas todas, mais reais que todas as obras literárias ou todas as sinfonias harmoniosas criadas por impulsos obedientes apenas a paixões sem impedimento, mais reais do que coisa nenhuma…

A nossa alma é alada e possuí a mesma cor dos nossos corações, esta evidência encontra-se exposta no centro da montra da loja de segredos onde me demoro horas a fitar o fundo da realidade com olhos tristonhos. A verdade prende-me os pés ao chão, impede o meu avanço ou recuo, não consigo atravessar a rua, não posso voltar a mim. Olho a cor do teu coração com os olhos mais humanos que em mim existem sem me conseguir içar deste sonho clandestino onde navego.

Um aviso inevitável da consciência ergue-me, por fim, do sono de onde regresso, com esforço. Sou agora um desertor da alma e do desejo. De olhos tristes e cansados, despedi-me mais uma vez de ti. Do alto do abismo imenso, espaço infinito que fica entre o sono e o despertar, a paisagem misteriosa despe a bruma morna e luminosa que ainda agora preenchia os cantos esbatidos dos meus sonhos.
Já não sei quando te vi, nem onde, se o nosso encontro não terá passado simplesmente de um quadro pintado por alguém, de um longe feito perto e não distância, de um risco na estrada, de uma consciência tão forte e tão intensa que te vendo nesse dia e a essa hora, de todos os outros tempos me esqueci.

O Mago sabia, e escreveu, um dia, que a calma toda que eu nunca tive me chega à alma quando penso em ti. O silêncio do Mago é agora este meu silêncio a cantar nesta tarde tristonha que quase esconde a ponte e o rio e o céu e as encostas da serrania. Foi num quadro que nos vimos… foi num quadro, sim, que te vi…
Aproximas-te, passas por mim a sorrir, e eu sigo-te.
Não me volto para trás, pois se te vejo sempre e ainda.
Parou o Tempo para te deixar passar…
… e o resto adivinhas facilmente sem que tenha de te dizer…
Qual é a cor do teu coração?
Tua é a cor do meu coração.
Qual é a cor do teu coração?
Parou o Tempo para nos deixar passar.
Na prosa, nas palavras, estão contidas todas as possibilidades do mundo.
Diz-me como nascem as palavras? E tu disseste!
No Verbo se corporizam todos os mistérios, se desnudam sinuosamente as ideias, eu própria me dispo e estremeço perante a nossa nudez de espécie alguma, desejos, estremecimentos, páginas e mais páginas frias de corpos inexistentes, apenas a imagem refletida por palavras criminosas que nada fazem acontecer … e nós tão cansados de esperar!

Diz-me como nascem as palavras? Estremecemos, e tu disseste!
Se sofremos inteiramente, porque sofremos? Palavras mais não são que devaneios externos escritos sem raciocinar, serão coisas sem sentido, água corrente de um ribeiro esquecido onde choramos por mais palavras ainda por acontecer. A tua prosa tem-me feito chorar, e hoje voltei a chorar! Ai que falta me fazem as tuas palavras! Relembro-as e choro pelas saudades de tudo o que nunca tivemos ou teremos, e um ódio tão verdadeiro quanto doloroso escreve em mim palavras instintivas que me assombram os dias e me invadem a solidão. Odeio-te, odeio-te quase tanto quanto te amo, amo-te quase tanto quanto te odeio, nem imagino o que é este Ódio-Amor, este Amor-Ódio que sinto por ti, e depois prefiro não sentir mais nada, nada mais me pesar ou destruir, e depois dispo-me completamente, uma e outra vez, sempre, repetidas vezes, galas completas onde me dispo completamente para ti, apesar de te odiar tanto, mas tanto, que era capaz de nunca mais me voltar a vestir o Amor que tenho por ti.  

Diz-me como nascem as palavras? Estremecemos, e tu disseste!
Escreves? Para quê? E o que lês?
Confio no que escrevo, e no que leio, confio nas palavras do Mago que nunca dorme nem dormia. Inquieto, abdicou dele próprio até que a Liberdade profética o visitou e o coroou.
Mago, Contemplador sem razão do mundo sem propósito… assim se batizou.
Como nascem as palavras? Através da leitura repetida de livros banais, e ao fim de alguns minutos, quem os escreve somos nós, e o que aqui está agora escrito não estava antes em parte alguma…
Diz-me como nascem as palavras? Estremecemos, e tu disseste!
Qual é a cor do teu coração?
Tua é a cor do meu coração.
Qual é a cor do teu coração?
Parou o Tempo para nos deixar passar…


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

51 - ESPERO POR UMA NOVA INFÂNCIA


Quero tocar uma serenata a bordo de um barco, escrever conversas verossímeis entre personagens de um romance com detalhes excessivos e laivos de realidade. Acredito nas dores e tragédias todas dessa história que vou criando, das almas imaginadas em frases com e sem sentido, nos monólogos dessa novela instintiva de gramática fácil de entender. Assim sinto-me capaz de criar algo de deliciosamente moderno, de verbo fácil mas delicado, sem suicídios de revólver que destruam as vidas desses homens e mulheres que ajudo a construir e a quem dedico parte considerável dos meus dias. Eis o problema que me tem dado cabo do cérebro, pois não sei tocar um único instrumento musical, e não sou capaz de alinhar frases que façam qualquer sentido. Que significado terão essas conversas que ficarão por escrever ou as sonatas que jamais serão compostas? Que conhecimento teremos delas? Correm-me nas veias da imaginação, só aí contemplarei essas obras imperfeitas e livres que facilmente serão esquecidas antes de eu as reconstruir. Melhor seria ser homem sem ideias ou imaginação que apenas acredita no significado das coisas ainda por dizer. Melhor seria eu ser a mais banal das criaturas, não ter profissão nem fé nem distrações, ceder a prazeres fúteis e despropositados, não saber ler, não distinguir a mentira nas conversas mais comuns, sentir a alegria somente como um gesto de raiva que cedo se esboroa ao sabor de um vento desviante.
Deixei-me levar por considerações descoloridas, mas nesta praça onde medito o sol espreguiça-se e ilumina uma tarde esplendorosa que dentro de momentos deixará de existir. Mais uma vez estou cético quanto à existência real deste lugar e deste tempo onde agora estou. Tudo será mais fácil de entender quando me encontrar cara a cara com o Mago, e todo o nosso ceticismo deixará de ter razão para existir.
Vejo esse outro tempo com clareza, antes não o visse, antes me dessem imagens de árvores e caras e sorrisos artificiais com quem pudesse gostar de conversar sem que a náusea me atingisse as células à primeira sílaba da primeira palavra que me oferecem.
É uma coisa muito física e que me cansa.
Preferia conversar somente com o olhar, sem palavras, compreender os outros através dos seus sorrisos e expressões, captar sem cansaços tudo o que lhes vai na alma, apenas o que verdadeiramente interessa, apenas a literatura do instante irrepetível e doce que nos seria dado a provar.
Vejo essas conversas em que nos compreendemos sem dizer uma única palavra. Sem esforço somos mestres contemplativos de um inteligível difícil de encarar. Praticar esta arte contrai todos os músculos do rosto de maneira ímpar, e as nossas caras transformam-se em cartazes coloridos de um grafismo extraordinário tão complexo como uma pintura de Almada. O nosso coração percorre essa estrada sem receios, o espelho visível desses outros que também somos desvenda-se ao outro e já nos conhecemos sem antes nos termos encontrado.
- Mago, quando deixaremos de ser invisíveis um para o outro? Quanto tempo faltará para que esta fantasia cinzenta e dolorosa seja substituída pela realidade fiel do infinito onde tu e eu nos encontraremos à mesa do nosso café.
Nada é tudo isto que escrevo.
Estéril é tudo aquilo que ensino.
Falsa é toda a emoção que comunico.
Acredito no homem Mago que afirmou, com inteligência, a evidência desta descoberta que também a ele atingiu como um raio súbito caído dos céus.
Para que possa ter toda a liberdade de que necessito fecho, cansado, as portas das minhas janelas. Foi o Mago quem me ensinou!


sábado, 18 de fevereiro de 2017

50 - ESTRANHO ESTE LUGAR ONDE NÃO EXISTO


Regresso a este lugar onde sou quando me faz falta o lugar onde não estou, e sofro. Por vezes sinto-me ainda mais órfão e padeço por me considerar um estranho, o temperamento altera-se involuntariamente. Dói-me a indiferença desagradável da rotina que maltrata os afetos e administra com habilidade um sofrimento atroz talhado com inteligência.


Desejo nada ter para desejar, quero abafar toda a arte que em mim possa existir, e tal como o Mago, a vontade que eu tenha de querer uma coisa é suficiente para ela morrer, e a ânsia de sentir fica sempre aquém do que atingimos. Nada dizer, nada sentir, nada exprimir, ser dolorosamente feliz nesse infortúnio errado de mim próprio, uma deliciosa e complexa incompreensão da minha figura não acontecida. Sonho contigo, e os meus silêncios interiores apagam-se milhares de vezes nessa terra espiritual onde nos movimentamos e acontecemos. O sonho criou a vida-real mais falsa e mentirosa que podia ter acontecido, e que de nada nos serve. O mundo é falso e castiga pois não gosta de ser sonhado, e o meu sonhar-te separou-nos muito antes nos ter unido de todas as maneiras possíveis e impossíveis, ignorou o Dom supremo que a ausência mata e o tédio petrifica. O nosso amor não nos possui, é este raio de sol acabrunhado que desassossega mais que todas as sombras da incerteza. Esquecemo-nos um no outro, um dentro do outro, brilhantes estrelas em sonhos por realizar, anéis de novos Saturnos a rodopiar em dedos divinos de peles claras eternamente jovens. Que me importa se só ficam espaços por preencher, que nos percamos no céu infinito sem sermos capazes de nos encontrar, e nos perdemos em conversas absurdas de frases sem nexo e sem sexo, tão imperfeitas e contraditórias como todas as coisas sem sexo o são. Eterna, absurda contradição! Somos paisagem humana abandonada, não vemos, mas sentimos tudo aquilo que não nos pertence e merecemos, e ainda o que fomos incapazes de dizer de nós.


A ave aproxima-se, gela de novo as minhas palavras, estas que não são minhas e que imitam o que eu queria dizer sem conseguir. Imito os passos falsos e os gestos de outrora, revisito os lugares onde me senti feliz, procurei o teu perfume no lugar vazio que imitou a tua presença e a cor do teu olhar. A nuvem longínqua caiu de repente sobre a minha Terra, e choveu uma chuva verdadeira de gotas de água geladas capazes de me fazer sonhar mais um sonho isolado, um que fale de amor, de vida e de arte, um sonho capaz de separar as mais banais células do meu corpo dos pensamentos estéreis que as compõem, um sonho que me ajude a deixar sonhar.


Onde fica o laranja do meu entardecer?


O Mago afirmou que apenas possuímos a sensação do nosso próprio corpo e não o corpo de verdade, e o mesmo acontece com a alma, que nem é nossa sequer.


Possuímos sensações, ao menos? Todas as sensações são ilusões…


A ave regressa, em voo inclinado, quase picado, a bater as asas rosadas ao vento, mostra descontentamento por me ver. A ave pertence ao vento que passa e ao rio que sobrevoa, é um corpo sem fronteiras definidas bem mais livre do que alguma vez serei.


Sinto o voo do pássaro apesar de não conseguir voar.


A força do animal agora é minha porque o vi, porque fui capaz de o escutar. Sonhei com ele antes mesmo de o ver, e a diferença entre esse antes e este depois é a incógnita presente na equação de quem dá realidade aos sonhos, de quem tenta dar ao sonho o equilíbrio da realidade, e assim sofre…


Espero por ti, meu amor, ou então sonho contigo.


Olho para ti, timidamente, e sei que sou como aquele louco que não consegue deixar de olhar de maneira deselegante para a senhora de aspeto distinto e misterioso que agora mesmo se sentou no banco de jardim.


Espero por ti, meu amor, olho para ti como um louco, ou então sonho contigo, em segredo, pela centésima milionésima vez.