Regresso a este lugar
onde sou quando me faz falta o lugar onde não estou, e sofro. Por vezes
sinto-me ainda mais órfão e padeço por me considerar um estranho, o
temperamento altera-se involuntariamente. Dói-me a indiferença desagradável da
rotina que maltrata os afetos e administra com habilidade um sofrimento atroz
talhado com inteligência.
Desejo nada ter para
desejar, quero abafar toda a arte que em mim possa existir, e tal como o Mago,
a vontade que eu tenha de querer uma coisa é suficiente para ela morrer, e a
ânsia de sentir fica sempre aquém do que atingimos. Nada dizer, nada sentir,
nada exprimir, ser dolorosamente feliz nesse infortúnio errado de mim próprio,
uma deliciosa e complexa incompreensão da minha figura não acontecida. Sonho
contigo, e os meus silêncios interiores apagam-se milhares de vezes nessa terra
espiritual onde nos movimentamos e acontecemos. O sonho criou a vida-real mais
falsa e mentirosa que podia ter acontecido, e que de nada nos serve. O mundo é
falso e castiga pois não gosta de ser sonhado, e o meu sonhar-te separou-nos
muito antes nos ter unido de todas as maneiras possíveis e impossíveis, ignorou
o Dom supremo que a ausência mata e o tédio petrifica. O nosso amor não nos
possui, é este raio de sol acabrunhado que desassossega mais que todas as
sombras da incerteza. Esquecemo-nos um no outro, um dentro do outro, brilhantes
estrelas em sonhos por realizar, anéis de novos Saturnos a rodopiar em dedos
divinos de peles claras eternamente jovens. Que me importa se só ficam espaços
por preencher, que nos percamos no céu infinito sem sermos capazes de nos
encontrar, e nos perdemos em conversas absurdas de frases sem nexo e sem sexo,
tão imperfeitas e contraditórias como todas as coisas sem sexo o são. Eterna,
absurda contradição! Somos paisagem humana abandonada, não vemos, mas sentimos
tudo aquilo que não nos pertence e merecemos, e ainda o que fomos incapazes de
dizer de nós.
A ave aproxima-se, gela
de novo as minhas palavras, estas que não são minhas e que imitam o que eu
queria dizer sem conseguir. Imito os passos falsos e os gestos de outrora, revisito
os lugares onde me senti feliz, procurei o teu perfume no lugar vazio que
imitou a tua presença e a cor do teu olhar. A nuvem longínqua caiu de repente
sobre a minha Terra, e choveu uma chuva verdadeira de gotas de água geladas
capazes de me fazer sonhar mais um sonho isolado, um que fale de amor, de vida
e de arte, um sonho capaz de separar as mais banais células do meu corpo dos
pensamentos estéreis que as compõem, um sonho que me ajude a deixar sonhar.
Onde fica o laranja do
meu entardecer?
O Mago afirmou que apenas
possuímos a sensação do nosso próprio corpo e não o corpo de verdade, e o mesmo
acontece com a alma, que nem é nossa sequer.
Possuímos sensações, ao
menos? Todas as sensações são ilusões…
A ave regressa, em voo
inclinado, quase picado, a bater as asas rosadas ao vento, mostra
descontentamento por me ver. A ave pertence ao vento que passa e ao rio que
sobrevoa, é um corpo sem fronteiras definidas bem mais livre do que alguma vez
serei.
Sinto o voo do pássaro
apesar de não conseguir voar.
A força do animal agora é
minha porque o vi, porque fui capaz de o escutar. Sonhei com ele antes mesmo de
o ver, e a diferença entre esse antes e este depois é a incógnita presente na
equação de quem dá realidade aos sonhos, de quem tenta dar ao sonho o
equilíbrio da realidade, e assim sofre…
Espero por ti, meu amor,
ou então sonho contigo.
Olho para ti,
timidamente, e sei que sou como aquele louco que não consegue deixar de olhar
de maneira deselegante para a senhora de aspeto distinto e misterioso que agora
mesmo se sentou no banco de jardim.
Espero por ti, meu amor,
olho para ti como um louco, ou então sonho contigo, em segredo, pela centésima milionésima
vez.
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