quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

51 - ESPERO POR UMA NOVA INFÂNCIA


Quero tocar uma serenata a bordo de um barco, escrever conversas verossímeis entre personagens de um romance com detalhes excessivos e laivos de realidade. Acredito nas dores e tragédias todas dessa história que vou criando, das almas imaginadas em frases com e sem sentido, nos monólogos dessa novela instintiva de gramática fácil de entender. Assim sinto-me capaz de criar algo de deliciosamente moderno, de verbo fácil mas delicado, sem suicídios de revólver que destruam as vidas desses homens e mulheres que ajudo a construir e a quem dedico parte considerável dos meus dias. Eis o problema que me tem dado cabo do cérebro, pois não sei tocar um único instrumento musical, e não sou capaz de alinhar frases que façam qualquer sentido. Que significado terão essas conversas que ficarão por escrever ou as sonatas que jamais serão compostas? Que conhecimento teremos delas? Correm-me nas veias da imaginação, só aí contemplarei essas obras imperfeitas e livres que facilmente serão esquecidas antes de eu as reconstruir. Melhor seria ser homem sem ideias ou imaginação que apenas acredita no significado das coisas ainda por dizer. Melhor seria eu ser a mais banal das criaturas, não ter profissão nem fé nem distrações, ceder a prazeres fúteis e despropositados, não saber ler, não distinguir a mentira nas conversas mais comuns, sentir a alegria somente como um gesto de raiva que cedo se esboroa ao sabor de um vento desviante.
Deixei-me levar por considerações descoloridas, mas nesta praça onde medito o sol espreguiça-se e ilumina uma tarde esplendorosa que dentro de momentos deixará de existir. Mais uma vez estou cético quanto à existência real deste lugar e deste tempo onde agora estou. Tudo será mais fácil de entender quando me encontrar cara a cara com o Mago, e todo o nosso ceticismo deixará de ter razão para existir.
Vejo esse outro tempo com clareza, antes não o visse, antes me dessem imagens de árvores e caras e sorrisos artificiais com quem pudesse gostar de conversar sem que a náusea me atingisse as células à primeira sílaba da primeira palavra que me oferecem.
É uma coisa muito física e que me cansa.
Preferia conversar somente com o olhar, sem palavras, compreender os outros através dos seus sorrisos e expressões, captar sem cansaços tudo o que lhes vai na alma, apenas o que verdadeiramente interessa, apenas a literatura do instante irrepetível e doce que nos seria dado a provar.
Vejo essas conversas em que nos compreendemos sem dizer uma única palavra. Sem esforço somos mestres contemplativos de um inteligível difícil de encarar. Praticar esta arte contrai todos os músculos do rosto de maneira ímpar, e as nossas caras transformam-se em cartazes coloridos de um grafismo extraordinário tão complexo como uma pintura de Almada. O nosso coração percorre essa estrada sem receios, o espelho visível desses outros que também somos desvenda-se ao outro e já nos conhecemos sem antes nos termos encontrado.
- Mago, quando deixaremos de ser invisíveis um para o outro? Quanto tempo faltará para que esta fantasia cinzenta e dolorosa seja substituída pela realidade fiel do infinito onde tu e eu nos encontraremos à mesa do nosso café.
Nada é tudo isto que escrevo.
Estéril é tudo aquilo que ensino.
Falsa é toda a emoção que comunico.
Acredito no homem Mago que afirmou, com inteligência, a evidência desta descoberta que também a ele atingiu como um raio súbito caído dos céus.
Para que possa ter toda a liberdade de que necessito fecho, cansado, as portas das minhas janelas. Foi o Mago quem me ensinou!


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