domingo, 22 de janeiro de 2017

49 - IMPOSSÍVEL DE ACONTECER


A nossa existência talvez não seja real. Materializei-me nesta figura de carne e osso que vou desconhecendo a cada dia mais um pouco. Deixamos de prestar atenção a quem somos e seguimos viagem para além da brisa e das esquinas sem rumo definido. Quase me esqueci de escrever, disseram-me que não fazia diferença se deixasse de escrever, mentiram-me, mentimos sempre para perpetuarmos o nosso avançar até esse pedaço de amanhã onde nos encontraremos. Resta-nos o poema de outrora, as suas cores e os seus cheiros, o amor nele compreendido e tão esquecido, resta-me a solidão da sua companhia.
- A tua presença é cada vez mais uma constante em mim, estás aqui, agora mesmo, ao meu lado, a desencaminhar-me os pensamentos delirantes. O fumo do teu cigarro fino a desenhar fantasmas adocicados pelo ar onde a luz deste sol matinal lhe penteia formas que tento decifrar. Distraio-me assim, a fazer de conta que sabes comunicar como os Apaches e os Comanches e os Sioux, e tu sabes tão bem comunicar através destes sinais de fumo. Eu analiso as imagens à tua semelhança, Mago, as formas esguias esbranquiçadas são iguais ao teu perfil, e o teu chapéu esvoaça levemente inclinado sobre a testa desenhada na perfeição. Sinto-te aqui bem perto, sentado na cadeira em frente à minha, espectral e desassossegado, as ideias todas a fluírem ao teu espírito, decorrentes de um sonho que agora é meu, e tu olhas para mim e sabes que durmo mal, nem precisas de o afirmar. Convidava-te para o jantar mas sei que não aceitarias, repetirias a fuga que ensaiaste após o chá que bebemos junto à gazela que eras tu, sei agora que a gazela era o teu pensamento a despedir-se de mim, e eu feito navio de carga incapaz de reconhecer a evidência natural desse teu gesto de amabilidade. Mago, tu és bondoso, foste de uma gentileza quase doentia para a humanidade que não te soube compreender, e sofreste a provação porque sabias que era assim que tudo teria de acontecer. O teu presente foi tudo menos inofensivo, as tuas palavras nasceram diferentes das demais, dedicaste a vida inteira a descarná-las da sua inocência e bondade, da suposta moral que lhes pudesse estar associada, pintaste-lhes uma total ausência de fé e uma aspereza campestre quase física, e as cores da tua ímpar felicidade solitária move-se, mística e alada, igual ao fumo que libertas a cada bafo teu.
Permaneces a meu lado, mais próximo ainda, nesta tarde inútil entrecortada por sons pestilentos que nos impedem de raciocinar. Os mamíferos bípedes movem-se, alienados, ausentes, insensíveis, num bulício permanente. Tornam-se insuportavelmente ruidosos pois não sabem quando se devem calar. A paisagem é composta por inúmeras personagens desinteressantes. São vidas às quais somos indiferentes, almas vazias, tão abstratas como as nossas, mas talvez mais reais e verdadeiras. Esta incapacidade que sentimos em as tolerar talvez resida na não veracidade da nossa existência que nos torna incapazes e sonolentos. Amanhã estarão esquecidos, hoje mesmo os esquecerei com grande facilidade, são apenas sombras e ruídos parasitas, visões incorpóreas desfocadas, tortas, apenas um mau momento que depressa terminará. Sentei-me nesta mesa de café para falar contigo, vejo o teu sorriso enquanto esfregas as mãos esquálidas para as aqueceres. Trazes o casaco descomposto e o chapéu desalinhado, mas isso não importa porque hoje é sábado e temos todo o tempo do mundo. Se quiséssemos, poderíamos facilmente desligar estes outros que não existem… destruí-los, apagá-los, retirar-lhes as vozes e cortar-lhes as línguas opressoras. Se quiséssemos poderíamos facilmente degolá-los, desmembrá-los e condenar ao perpétuo esquecimento as suas conceções fúteis da vida.
- Mago, será esta solidão que me faz pensar assim? Tu dizias que a presença de outra pessoa te atrasava imediatamente o pensamento, era um contraestímulo que te fazia “perder” a inteligência, e passado pouco tempo era apenas sono o que sentias. Os teus hábitos eram da solidão, e a tua moral era não fazer a ninguém nem mal nem bem. Ser altamente sociável de um modo altamente negativo... e não sermos mais do que isso.
- Mago, o mundo precisa urgentemente de ser reformado. Porque não dizes nada, … claro que sim, desculpa a minha ousadia, claro que já disseste tudo o que havia para dizer, e puseste grades altíssimas a demarcar o jardim do teu ser, pois assim não te submeterias ao estado nem aos homens. Tu, tal como eu, nunca tiveste amigos… amigos, nenhum… só uns conhecidos que julgam simpatizar connosco e teriam pena se um comboio nos passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.
Ris de mim, estás a rir-te e as tuas gargalhadas são tudo menos trágicas, são quentes e unem o meu afastamento natural, ao contrário de tudo o que tu dizias, e em torno de nós cresceu esta auréola de amizade, não de frieza.
- Eu amo-te, Mago, amo-te de verdade, e sabes que não me falta, de todo, o sentido estético. Como vês, não é impossível alguém amar-te. Não será amor esta conversa que de quando em vez praticamos? É algo muito parecido a amor esta conversa neste lugar da minha vida. E nós, seremos parentes ou desconhecidos?
Por debaixo deste céu estrelado de inverno, uma lua quase nova reflete o nosso modo de pouco sentir, tal e qual aquela primeira vez em que escreveste estas mesmas palavras. Agora vou regressar à estrada que sempre conheci, esta estrada que aqui escrevo e te dedico. Eu amo-te, Mago, e fiz acontecer o que sempre te pareceu impossível, como um estranho tratar-te por tu...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

48 - ENTARDECER


 
O céu, amarei para sempre este céu de um vago janeiro onde viajo, onde a paisagem amortece a queda das palavras que hoje ainda não escrevi. Passeio o olhar pela auréola de tons onde a luz de um sol intenso vibra, apesar da tarde fria. Neste oceano nada é tristonho, o dourado enfeita as colinas e fachadas dos edifícios antigos onde a história de outros tempos permanece, melancólica, nas paredes e pavimentos, nas escadarias e ruelas, nos telhados e varandas, nos pátios e nas amuradas da sé catedral desta cidade onde habito. As casas todas pintadas de branco, os telhados avermelhados, a linha do horizonte a pairar a norte, o perfil monástico do mosteiro, a oeste, e aqui bem perto a faculdade centenária onde fantasmas sorridentes pairam, absurdos, hoje menos angustiados do que ontem, a recordar viagens de outrora.
Fantasmas, viajaram mais do que nós, partiram e visitaram outras terras, outras gentes, mas não podem comunicar nada do que viram, nem podem ensinar o sentido das suas experiências pois tal seria inútil. O Mago é o único fantasma que consigo escutar. Antes de o ser, acautelou a sua despedida e mediu na exata proporção o peso inteiro de suas palavras. Este sol de hoje, foi ele quem o decidiu partilhar connosco, por algumas horas, e eu pergunto-me se esta luz é real, se não passa de mais uma ilusão que decorre do simples facto de eu estar vivo e o Mago ser bem mais rápido do que eu a raciocinar.
- Viajei sem qualquer quantidade de medida de tempo. Viajei onde o tempo se não conta por medida. Eu parti? Eu não vos juraria que parti…
Mago, partiste pelo crepúsculo, tu próprio o escreveste, e todos os outros símbolos que apenas deuses poderão compreender. Não importa, ao recordar as tuas palavras arranho os telhados desta paisagem que se estende diante de mim e recordo-te, eu que nunca te vi, pois és a luz desta tarde de inverno, esta luminosa e resplandecente evidência que fulge por toda a parte. Ocultaste a esperança de ti, inutilmente, mas és agora toda a esperança do mundo. Todos os continentes estão moribundos, têm os seus dias contados e não sabem como se irão reinventar. Notícias de guerra sonhadas e por sonhar começam a ser escritas, para além das que estão a acontecer, e de todas as que acontecem sem que ninguém as noticie. É como se fossem impossíveis terras de ninguém, lugares ocultos que esmagam pela sua invisibilidade, e para que me contas tu isto, Mago, para que me contas o que todos preferíamos não saber?
Escondeste-te atrás da porta ou debaixo da mesa para que a Realidade não te visse, e venceste-a com este truque simples, e essa tua infinita capacidade de viajar. Lá fora a luz colorida permanece quase inalterada, o sol baixou um pouco mais a sua altura e aproxima-se da parte oriental da paisagem, e a ideia do movimento do astro onde nos imaginamos acordados atinge-me e eu perco-me por momentos sem saber onde irei desembarcar.
As palavras de hoje não são ideias minhas, não as consegui, até agora, imaginar, pois se estou parado a olhar para o lado de fora da imensa janela do café esplanada onde me encontro. É o meu amigo Mago que brilha lá fora no céu mais branco que azul. A sua luz é antiga e tão moderna, renovo as minhas emoções neste convívio mudo que me enche de pensamentos contraditórios.
Leio a luz acima de todos os teus livros, e o vento de hoje desaparece, a vida quotidiana protesta de tão absurda e fútil que é, e fica apenas a paisagem, permanecem estes telhados de casas velhas com paredes brancas de janelas antigas e histórias centenárias. Tudo seria menos inútil se gozássemos antecipadamente as meditações abstratas de um simples por-do-sol.
A tarde abranda e a luminosidade ganha configurações ainda mais poéticas e Pessoanas. Do meu café sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, surgiu-me esta viagem na cabeça.

De agora em diante este imaginário será bem mais surreal e inquieto.
De agora em diante o mundo inteiro estará bem mais perto do fim.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

47 - O ANTES E O DEPOIS



Imaginemos, por momentos, uma época em que viajar do campo à cidade demorava vários dias. Imaginemos o tempo necessário para percorrer cada pedaço de paisagem, cada silêncio aqui e além entrecortado pelos pensamentos domésticos e rurais de cada viajante, a saudade dos lugares e todas as complexas sensações de quem ansiava por uma vida mais feliz. As casas caiadas abandonadas e os filhos deixados para trás, num prolongado silêncio e com uma dor profunda a apertar o peito dos viajantes. Imaginemos as distâncias percorridas e as lágrimas vertidas por esses possíveis náufragos que, perplexos, apenas ambicionavam por um crepúsculo melhor.
Imaginemos, por momentos, uma época em que viajar para fugir da guerra e da destruição, ambicionar a uma improvável hipótese de futuro, demorava vários castigos e provações e inúmeros meses de dúvidas carregados de medos e desilusões. Imaginemos os olhares absurdos e inexplicáveis que nos lançaram enquanto tentávamos sobreviver, os hálitos a trevas e os contornos nebulosos de centenas de visões infernais, o frio, o frio intenso dos invernos escuros e longos onde se tremia na penumbra de formas impossíveis de descrever. Imaginemos, ainda, os mares carregados de barcaças de refugiados, sobreviventes aflitos e já quase sem propósito nenhum, esquecidos por alguém que os usou para enriquecer de forma cobarde e vil.
Imaginemos tudo isto, viajemos com a ideia triste dos nossos insucessos a encharcar-nos a alma moribunda. Com os filhos ao colo ou pela mão, enfrentamos rituais sádicos em campos de refugiados transformados em prisões apinhadas de sobreviventes doentes, malnutridos, cansados, desesperados e tão, tão humanos viajantes como nós.
Imaginemos!
Deste lado de cá do tempo nunca imaginei uma coisa assim, e em que barco ou barcaça faria essa viagem, decerto morreria antes de tentar sequer sobreviver.
Náufrago, com nenhuma salvação à vista, eis os meus últimos instantes. Exausto, luto contra os elementos, nado com as poucas forças que me restam apenas para tentar adiar a morte. Perplexo, assisto à chegada de uma equipa de emergência que resgata os companheiros de viagem e de dor. Apago-me instantes antes de também ser socorrido, e as luzes confusas do final de tarde extinguem-se vagamente de mim.
Imaginemos a hora misteriosa em que partiremos.
Em que porto desconhecido deixaremos de existir? Quem iremos encontrar, com que rapidez acontecerá essa viagem no tempo? Seremos transmovidos para um outro período onde uma infinidade de coisas inúteis passará veloz à nossa volta, objetos impossíveis e absurdos de tonalidades inexistentes. São elementos esquecidos, e escutaremos vozes extraordinárias a declamar versos caóticos, tão pacificadores quanto proféticos.
Viajar no tempo é o que de mais certo nos irá acontecer quando partirmos. Levaremos connosco o que de mais valioso colecionámos do lado de cá do tempo, este que não se pode medir sem erro, este que não sabemos contar, este que decorre sem sentido. Carregaremos connosco coisas importantíssimas sem peso nenhum.
Imaginemos tudo isto, por momentos…

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

46 - MAGO, SERÁS O MUNDO?



Desço pela escada como nómada que sou, piso os degraus de mármore recordando o ano que ainda agora terminou. Sumiu-se, apagou-se, encontra-se distante de mim, uma sombra difícil de recuperar. A transparência emocionante das memórias passadas torna difícil lembrar-me de ontem, e é sempre complicado regressar.
Adapto-me, o vento passa e as imagens límpidas tremeluzem ao longe, eis todo o surrealismo que necessito para sobreviver.
A ressaca é o fio desta narrativa intervalada por capítulos, uns mais infelizes do que outros, e dói-me a saudade de os ter escrito, pois agora sei o que nesse instante fui e pensei, e libertei esse corpo onde repousei o pensamento, numa ilha perdida de um mar sem fim.
A dormir chegamos mais além e somos desviados do que não importa, contemplamos a frescura das manhãs de inverno, o som das tardes frias e os bafos de quem aprecia caminhar lentamente, a arfar de contentamento, por ruas povoadas de fantasmas e duendes.
O meu gosto é este que não pesa nem tem força, é instintivo, procura-me e eu deixo-o entrar. É diferente de um romance, esta história sem rumo que frequento. Não faz qualquer sentido, fui impelido a acompanhá-la, entre as noites e os dias, na companhia deste universo onde escrevo e leio para me entreter, onde minto ao desbarato verdades proféticas que a vida nos ensina
Mexo os músculos neste teatro que é a vida, interlúdio desconcertante que está para além de todos os poemas.
Morremos um pouco mais a cada segundo que passa, sem darmos conta. Vamos morrendo sempre, e vamos vivendo como o sol e a lua, como o amor, como a matéria inteira dos espíritos viajantes, extensas formas de nada absoluto que como nós sentem a coisa nenhuma que é a vida a acontecer.
A sensação de cansaço é a espuma que resulta depois da dança atribulada. O quarto onde me fechei tem cantos e recantos bafientos que contemplo e onde me sinto mais capaz. Aqui vejo e vivo tudo com mais naturalidade, é onde danço sem amarguras, onde as lágrimas não ficam por dizer, onde não penso em nada porque não pensar em nada é a vontade maior que teima em acontecer. O céu é alto neste meu quarto, de um azul intenso. Olho-o e adormeço a pensar nele, acordo a olhar para ele, retorno todos os dias a esse azul tépido, não violento, não mágico, não esperança, apenas o azul todo que me sorri.
Os ramos das minhas árvores estão azuis, e o sorriso das folhas e dos troncos, as raízes inteiras, a porta e as paredes do quarto, todas tão azuis e eu o maior dos pedintes a desejar, com saudade, que este quarto me abrigue para sempre e me pinte de azul, me mimetize nesta ideia de azul que imagino. Sou a paisagem que vislumbro, estive desatento por um breve instante, e o azul fugiu deste quarto onde me escondo. Repeti a vontade que sinto em vê-lo, simples vontade que me angustia inutilmente, pois nada de azul se voltou a pintar nestas paredes e tetos inexistentes.
Estagnei.
Inútil, tenho vivido estes primeiros dias do ano como um inútil, repetindo movimentos sonolentos que conservei do ano que findou.
Esta viagem não existe, mas os barcos, os comboios, os automóveis e os aviões berram, estridentes, não me deixam descansar.
- EMBARCA! De que é que tu estás à espera? – perguntam-me, em uníssono. – A viagem é esta paisagem que foge e te escapa.
O Mago pressagiou, e disse que “só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos”, mas que nada realizamos, sonhamos profeticamente tudo quanto a vida realizou de nós. Somos os débeis deste mundo, aqueles que julgam realizar tudo o que querem, eu assumo a minha alma contemplativa menos vezes do que o desejado, logo sou muito mais a coisa externa e menos tumultuosa de mim.
Estarei farto destas conversas invisíveis? Estarei cansado de me recolher menos em sonhos do que no meu trabalho visível? Não! Continuarei a procurar esses deuses que teimam em me perseguir, pesam em mim, bradam angustiadas sensações nossas que tenho de recordar. Vivem em mim, e durmo até a pensar, deitado, a correr, sinto as pétalas brancas, as mais pequenas pétalas da flor, e olho-a como se lá não existisse…
Aqui nasce uma parte diferente da trajetória.
Diz-me como nascem as palavras, consola-me, dá-me alguma esperança, pois se tudo o que vemos e sentimos faz oscilar a minha alma de pedinte. Mago, diz-me como nascem as palavras. Consola-me, tu que viste tudo que nunca tinhas visto, que te consolaste com o céu azul alto, limpo e sereno, com a brisa, o calor ou a frescura, com a saudade e a sua esperança, com os sorrisos de magia à janela do mundo, diz-me, de uma vez por todas, como nascem as palavras.
Somos parecidos só nesta forma humana de existência, falsas partes de corpos frágeis que se assemelham em órgãos e membros, tão falsos na sua corpórea estrutura.
A tua viagem é uma viagem eterna, cheia de sonhos por concretizar, a viagem real de um ser físico que nos abandonou, mas de um ser desperto que nos chegará para sempre, livre, vigilante.
Mago, és a nascente onde nascem as palavras, a luz que não deixa dormir nem acordar, aquele para onde aprendi a regressar sempre que necessito de repouso e tento encontrar as palavras de que necessito para sobreviver.
Talvez tudo tenha uma explicação qualquer, talvez estejamos apenas a imitar alguém que já fomos e que não é propriamente a pessoa de agora. O adulto estúpido que sou a tentar relembrar a criança inteligente de outrora que me tenta emprestar o espírito erudito de então, muito mais sensível e sensato. Existe essa possibilidade, e eu sigo a estrada, por agora, arrasto-me até à ideia de fim do mundo onde me reencontrarei.
É dentro de nós que encontraremos todas as viagens realizadas e por realizar, e todas as palavras também.

sábado, 14 de janeiro de 2017

45 - ANO NOVO



Partir para parte incerta seria o verdadeiro sinal da nossa força, conhecer o que se torna impercetível, o não das coisas que nos cercam, anseio dúbio que se tornou parte de mim a cada novo instante. Sufocamos onde existimos, balançamos ao vento, levemente, e escutamos vozes que se misturam ao longe formando esta estranha melodia. Fazemos parte deste lugar onde existimos e não existimos, uma parte perdida no tempo e no espaço, uma esquina, uma parede, um pedaço de vazio sombrio onde emergem luzes e sinais contínuos que saltam por cima desses rumores e dizem: - Aqui estamos!

O que nos rodeia é a vida, que também é vida de outros, a infiltrar-se como uma doença para dentro dos pulmões, e respiramos irrefletidamente essa atmosfera que nos causa de imediato uma sensação de estranheza. Aqui espera-se, perde-se tempo, perde-se o tempo de maneira surreal, e depois alguns sinais sonoros, intercalados por números e letras a piscar, quebram a nulidade do lugar alterando os ritmos dolentes de quem passou horas à espera de coisa nenhuma. Onde estou não sopra o vento, apenas as pessoas movimentam o ar ao deambularem por corredores iluminados, alheias ao passar do dia, meio perdidas. Tentam encontrar a sua alma por entre outras que vagueiam pelos mesmos corredores iluminados, investigam o que não entendem, procuram algo de novo para pesquisar, e fazem-no todos os dias da mesma maneira.

Sonho agora por não conseguir sonhar depois a paz por que anseio. Estendo o braço, estico-o até a mão alcançar a parede vagamente rugosa onde me apoio. Sinto-me parte desse lugar onde já não estou e fico perturbado. A água toda que vejo à minha volta aprisiona a única parte de mim que sente a solidez de um chão, é o convés de uma embarcação que já abandonei, e depois chega uma viatura que me arrasta para além das muralhas eletrificadas do cárcere mais seguro que alguma vez foi construído. Entro sem armas no recinto, as personagens não parecem seres naturais, coisas naturais, estou intranquilo, estou preso e tenho medo. Ali foram conduzidos os prisioneiros mais perigosos que a civilização moderna viu nascer, seres artificiais quase tão naturais como eu, e a sua naturalidade louca é a maior das estranhezas deste lugar. Não queria estar aqui, sinto-me tão doente como os verdadeiros alienados e loucos desta instituição. O natural é que é o estranho, e o Mago já o sabia, o natural era o estranho e o diferente, e sentia-o tal como todos a quem a civilização fez nascer segunda vez.

Acaba o ano, termina mais um ano e eu sinto cansaço…

Por preguiça escrevi muito menos do que devia, evitei o conflito físico com as minhas vozes, com as conversas invisíveis e improváveis, e nem sei se acredito mais em Deus, se apenas no Mago, se apenas no cansaço que me permite ainda ter forças para escrever.

Um novo ano chega em breve, muito em breve, talvez nele eu me venha a reencontrar numa qualquer praia pequena e deserta, onde três dias de férias isolado do mundo fariam toda a diferença.

Não quero partir, quero ver o ano novo dentro de uma pequena caixa de cartão a passar tão depressa como todos os outros que acabaram antes dele, como este que hoje acaba, como o anterior, como o que deu fim ao milénio e o seu gémeo, o último ano do milénio anterior.

Sinto uma infância e uma libertação, regresso a um tempo onde as sinto, eis aqui a nova sombra de uma encarnação anterior.

Afoguei-me, de certo modo, desci essa escada íngreme que não desejava conhecer, e risquei a folha branca de pequena gramagem com o lápis afiado, sempre no mesmo lugar, até a rasgar, e regressei ao lugar onde sabia que dificilmente iria sobreviver sem ajuda. Era o tempo em que a raiva fazia parte do quotidiano e representava as emoções e as falas e o conhecimento por inteiro. Fomos ensinados a renascer esquecendo tudo o que fomos, e adaptámo-nos à nova vida que nos foi dada, como o ano novo que nasce amanhã, e o fio da narrativa some-se e ofusca as emoções, constantemente. Quem somos? Deixou de interessar, e é tão difícil lembrarmo-nos do ontem, é cada vez mais difícil olhar para o passado com os olhos que o passado merece. Seremos nós todos partes impercetíveis de um gigantesco romance falhado? Demasiados para contar, demasiados para importar, maravilhas pequenas a imaginar o que o futuro terá para oferecer, que palavras terá o ano novo escondido, que rumores, que preocupações, que experiências…

Somos loucos à deriva neste gigantesco hospital psiquiátrico, e amanhã há fogo de artifício para festejarmos a nossa permanente loucura. Meia-noite, o mundo festeja à meia-noite a entrada do novo ano.

Conseguiremos sair desta ilha para onde nos atiraram, nem que seja a nadar, nem que seja de avião, escondidos no porão de carga como nos filmes de espiões do século passado, antes tentar que morrer à fome e à sede neste lugar.

Amanhã acaba o ano, e festejaremos a entrada do novo com pompa e circunstância. Na nossa casa, a dormir...