segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

46 - MAGO, SERÁS O MUNDO?



Desço pela escada como nómada que sou, piso os degraus de mármore recordando o ano que ainda agora terminou. Sumiu-se, apagou-se, encontra-se distante de mim, uma sombra difícil de recuperar. A transparência emocionante das memórias passadas torna difícil lembrar-me de ontem, e é sempre complicado regressar.
Adapto-me, o vento passa e as imagens límpidas tremeluzem ao longe, eis todo o surrealismo que necessito para sobreviver.
A ressaca é o fio desta narrativa intervalada por capítulos, uns mais infelizes do que outros, e dói-me a saudade de os ter escrito, pois agora sei o que nesse instante fui e pensei, e libertei esse corpo onde repousei o pensamento, numa ilha perdida de um mar sem fim.
A dormir chegamos mais além e somos desviados do que não importa, contemplamos a frescura das manhãs de inverno, o som das tardes frias e os bafos de quem aprecia caminhar lentamente, a arfar de contentamento, por ruas povoadas de fantasmas e duendes.
O meu gosto é este que não pesa nem tem força, é instintivo, procura-me e eu deixo-o entrar. É diferente de um romance, esta história sem rumo que frequento. Não faz qualquer sentido, fui impelido a acompanhá-la, entre as noites e os dias, na companhia deste universo onde escrevo e leio para me entreter, onde minto ao desbarato verdades proféticas que a vida nos ensina
Mexo os músculos neste teatro que é a vida, interlúdio desconcertante que está para além de todos os poemas.
Morremos um pouco mais a cada segundo que passa, sem darmos conta. Vamos morrendo sempre, e vamos vivendo como o sol e a lua, como o amor, como a matéria inteira dos espíritos viajantes, extensas formas de nada absoluto que como nós sentem a coisa nenhuma que é a vida a acontecer.
A sensação de cansaço é a espuma que resulta depois da dança atribulada. O quarto onde me fechei tem cantos e recantos bafientos que contemplo e onde me sinto mais capaz. Aqui vejo e vivo tudo com mais naturalidade, é onde danço sem amarguras, onde as lágrimas não ficam por dizer, onde não penso em nada porque não pensar em nada é a vontade maior que teima em acontecer. O céu é alto neste meu quarto, de um azul intenso. Olho-o e adormeço a pensar nele, acordo a olhar para ele, retorno todos os dias a esse azul tépido, não violento, não mágico, não esperança, apenas o azul todo que me sorri.
Os ramos das minhas árvores estão azuis, e o sorriso das folhas e dos troncos, as raízes inteiras, a porta e as paredes do quarto, todas tão azuis e eu o maior dos pedintes a desejar, com saudade, que este quarto me abrigue para sempre e me pinte de azul, me mimetize nesta ideia de azul que imagino. Sou a paisagem que vislumbro, estive desatento por um breve instante, e o azul fugiu deste quarto onde me escondo. Repeti a vontade que sinto em vê-lo, simples vontade que me angustia inutilmente, pois nada de azul se voltou a pintar nestas paredes e tetos inexistentes.
Estagnei.
Inútil, tenho vivido estes primeiros dias do ano como um inútil, repetindo movimentos sonolentos que conservei do ano que findou.
Esta viagem não existe, mas os barcos, os comboios, os automóveis e os aviões berram, estridentes, não me deixam descansar.
- EMBARCA! De que é que tu estás à espera? – perguntam-me, em uníssono. – A viagem é esta paisagem que foge e te escapa.
O Mago pressagiou, e disse que “só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos”, mas que nada realizamos, sonhamos profeticamente tudo quanto a vida realizou de nós. Somos os débeis deste mundo, aqueles que julgam realizar tudo o que querem, eu assumo a minha alma contemplativa menos vezes do que o desejado, logo sou muito mais a coisa externa e menos tumultuosa de mim.
Estarei farto destas conversas invisíveis? Estarei cansado de me recolher menos em sonhos do que no meu trabalho visível? Não! Continuarei a procurar esses deuses que teimam em me perseguir, pesam em mim, bradam angustiadas sensações nossas que tenho de recordar. Vivem em mim, e durmo até a pensar, deitado, a correr, sinto as pétalas brancas, as mais pequenas pétalas da flor, e olho-a como se lá não existisse…
Aqui nasce uma parte diferente da trajetória.
Diz-me como nascem as palavras, consola-me, dá-me alguma esperança, pois se tudo o que vemos e sentimos faz oscilar a minha alma de pedinte. Mago, diz-me como nascem as palavras. Consola-me, tu que viste tudo que nunca tinhas visto, que te consolaste com o céu azul alto, limpo e sereno, com a brisa, o calor ou a frescura, com a saudade e a sua esperança, com os sorrisos de magia à janela do mundo, diz-me, de uma vez por todas, como nascem as palavras.
Somos parecidos só nesta forma humana de existência, falsas partes de corpos frágeis que se assemelham em órgãos e membros, tão falsos na sua corpórea estrutura.
A tua viagem é uma viagem eterna, cheia de sonhos por concretizar, a viagem real de um ser físico que nos abandonou, mas de um ser desperto que nos chegará para sempre, livre, vigilante.
Mago, és a nascente onde nascem as palavras, a luz que não deixa dormir nem acordar, aquele para onde aprendi a regressar sempre que necessito de repouso e tento encontrar as palavras de que necessito para sobreviver.
Talvez tudo tenha uma explicação qualquer, talvez estejamos apenas a imitar alguém que já fomos e que não é propriamente a pessoa de agora. O adulto estúpido que sou a tentar relembrar a criança inteligente de outrora que me tenta emprestar o espírito erudito de então, muito mais sensível e sensato. Existe essa possibilidade, e eu sigo a estrada, por agora, arrasto-me até à ideia de fim do mundo onde me reencontrarei.
É dentro de nós que encontraremos todas as viagens realizadas e por realizar, e todas as palavras também.

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