Desço pela escada como
nómada que sou, piso os degraus de mármore recordando o ano que ainda agora
terminou. Sumiu-se, apagou-se, encontra-se distante de mim, uma sombra difícil
de recuperar. A transparência emocionante das memórias passadas torna difícil
lembrar-me de ontem, e é sempre complicado regressar.
Adapto-me, o vento
passa e as imagens límpidas tremeluzem ao longe, eis todo o surrealismo que
necessito para sobreviver.
A ressaca é o fio desta
narrativa intervalada por capítulos, uns mais infelizes do que outros, e dói-me
a saudade de os ter escrito, pois agora sei o que nesse instante fui e pensei,
e libertei esse corpo onde repousei o pensamento, numa ilha perdida de um mar
sem fim.
A dormir chegamos mais
além e somos desviados do que não importa, contemplamos a frescura das manhãs
de inverno, o som das tardes frias e os bafos de quem aprecia caminhar
lentamente, a arfar de contentamento, por ruas povoadas de fantasmas e duendes.
O meu gosto é este que
não pesa nem tem força, é instintivo, procura-me e eu deixo-o entrar. É
diferente de um romance, esta história sem rumo que frequento. Não faz qualquer
sentido, fui impelido a acompanhá-la, entre as noites e os dias, na companhia deste
universo onde escrevo e leio para me entreter, onde minto ao desbarato verdades
proféticas que a vida nos ensina
Mexo os músculos neste
teatro que é a vida, interlúdio desconcertante que está para além de todos os
poemas.
Morremos um pouco mais
a cada segundo que passa, sem darmos conta. Vamos morrendo sempre, e vamos
vivendo como o sol e a lua, como o amor, como a matéria inteira dos espíritos
viajantes, extensas formas de nada absoluto que como nós sentem a coisa nenhuma
que é a vida a acontecer.
A sensação de cansaço é
a espuma que resulta depois da dança atribulada. O quarto onde me fechei tem
cantos e recantos bafientos que contemplo e onde me sinto mais capaz. Aqui vejo
e vivo tudo com mais naturalidade, é onde danço sem amarguras, onde as lágrimas
não ficam por dizer, onde não penso em nada porque não pensar em nada é a
vontade maior que teima em acontecer. O céu é alto neste meu quarto, de um azul
intenso. Olho-o e adormeço a pensar nele, acordo a olhar para ele, retorno
todos os dias a esse azul tépido, não violento, não mágico, não esperança, apenas
o azul todo que me sorri.
Os ramos das minhas
árvores estão azuis, e o sorriso das folhas e dos troncos, as raízes inteiras,
a porta e as paredes do quarto, todas tão azuis e eu o maior dos pedintes a
desejar, com saudade, que este quarto me abrigue para sempre e me pinte de
azul, me mimetize nesta ideia de azul que imagino. Sou a paisagem que
vislumbro, estive desatento por um breve instante, e o azul fugiu deste quarto
onde me escondo. Repeti a vontade que sinto em vê-lo, simples vontade que me
angustia inutilmente, pois nada de azul se voltou a pintar nestas paredes e
tetos inexistentes.
Estagnei.
Inútil, tenho vivido
estes primeiros dias do ano como um inútil, repetindo movimentos sonolentos que
conservei do ano que findou.
Esta viagem não existe,
mas os barcos, os comboios, os automóveis e os aviões berram, estridentes, não
me deixam descansar.
- EMBARCA! De que é que
tu estás à espera? – perguntam-me, em uníssono. – A viagem é esta paisagem que
foge e te escapa.
O Mago pressagiou, e
disse que “só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos”, mas que nada
realizamos, sonhamos profeticamente tudo quanto a vida realizou de nós. Somos
os débeis deste mundo, aqueles que julgam realizar tudo o que querem, eu assumo
a minha alma contemplativa menos vezes do que o desejado, logo sou muito mais a
coisa externa e menos tumultuosa de mim.
Estarei farto destas
conversas invisíveis? Estarei cansado de me recolher menos em sonhos do que no
meu trabalho visível? Não! Continuarei a procurar esses deuses que teimam em me
perseguir, pesam em mim, bradam angustiadas sensações nossas que tenho de
recordar. Vivem em mim, e durmo até a pensar, deitado, a correr, sinto as
pétalas brancas, as mais pequenas pétalas da flor, e olho-a como se lá não
existisse…
Aqui nasce uma parte
diferente da trajetória.
Diz-me como nascem as
palavras, consola-me, dá-me alguma esperança, pois se tudo o que vemos e
sentimos faz oscilar a minha alma de pedinte. Mago, diz-me como nascem as
palavras. Consola-me, tu que viste tudo que nunca tinhas visto, que te
consolaste com o céu azul alto, limpo e sereno, com a brisa, o calor ou a
frescura, com a saudade e a sua esperança, com os sorrisos de magia à janela do
mundo, diz-me, de uma vez por todas, como nascem as palavras.
Somos parecidos só
nesta forma humana de existência, falsas partes de corpos frágeis que se
assemelham em órgãos e membros, tão falsos na sua corpórea estrutura.
A tua viagem é uma
viagem eterna, cheia de sonhos por concretizar, a viagem real de um ser físico
que nos abandonou, mas de um ser desperto que nos chegará para sempre, livre,
vigilante.
Mago, és a nascente
onde nascem as palavras, a luz que não deixa dormir nem acordar, aquele para
onde aprendi a regressar sempre que necessito de repouso e tento encontrar as
palavras de que necessito para sobreviver.
Talvez tudo tenha uma
explicação qualquer, talvez estejamos apenas a imitar alguém que já fomos e que
não é propriamente a pessoa de agora. O adulto estúpido que sou a tentar
relembrar a criança inteligente de outrora que me tenta emprestar o espírito
erudito de então, muito mais sensível e sensato. Existe essa possibilidade, e
eu sigo a estrada, por agora, arrasto-me até à ideia de fim do mundo onde me
reencontrarei.
É dentro de nós que
encontraremos todas as viagens realizadas e por realizar, e todas as palavras
também.
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