quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

47 - O ANTES E O DEPOIS



Imaginemos, por momentos, uma época em que viajar do campo à cidade demorava vários dias. Imaginemos o tempo necessário para percorrer cada pedaço de paisagem, cada silêncio aqui e além entrecortado pelos pensamentos domésticos e rurais de cada viajante, a saudade dos lugares e todas as complexas sensações de quem ansiava por uma vida mais feliz. As casas caiadas abandonadas e os filhos deixados para trás, num prolongado silêncio e com uma dor profunda a apertar o peito dos viajantes. Imaginemos as distâncias percorridas e as lágrimas vertidas por esses possíveis náufragos que, perplexos, apenas ambicionavam por um crepúsculo melhor.
Imaginemos, por momentos, uma época em que viajar para fugir da guerra e da destruição, ambicionar a uma improvável hipótese de futuro, demorava vários castigos e provações e inúmeros meses de dúvidas carregados de medos e desilusões. Imaginemos os olhares absurdos e inexplicáveis que nos lançaram enquanto tentávamos sobreviver, os hálitos a trevas e os contornos nebulosos de centenas de visões infernais, o frio, o frio intenso dos invernos escuros e longos onde se tremia na penumbra de formas impossíveis de descrever. Imaginemos, ainda, os mares carregados de barcaças de refugiados, sobreviventes aflitos e já quase sem propósito nenhum, esquecidos por alguém que os usou para enriquecer de forma cobarde e vil.
Imaginemos tudo isto, viajemos com a ideia triste dos nossos insucessos a encharcar-nos a alma moribunda. Com os filhos ao colo ou pela mão, enfrentamos rituais sádicos em campos de refugiados transformados em prisões apinhadas de sobreviventes doentes, malnutridos, cansados, desesperados e tão, tão humanos viajantes como nós.
Imaginemos!
Deste lado de cá do tempo nunca imaginei uma coisa assim, e em que barco ou barcaça faria essa viagem, decerto morreria antes de tentar sequer sobreviver.
Náufrago, com nenhuma salvação à vista, eis os meus últimos instantes. Exausto, luto contra os elementos, nado com as poucas forças que me restam apenas para tentar adiar a morte. Perplexo, assisto à chegada de uma equipa de emergência que resgata os companheiros de viagem e de dor. Apago-me instantes antes de também ser socorrido, e as luzes confusas do final de tarde extinguem-se vagamente de mim.
Imaginemos a hora misteriosa em que partiremos.
Em que porto desconhecido deixaremos de existir? Quem iremos encontrar, com que rapidez acontecerá essa viagem no tempo? Seremos transmovidos para um outro período onde uma infinidade de coisas inúteis passará veloz à nossa volta, objetos impossíveis e absurdos de tonalidades inexistentes. São elementos esquecidos, e escutaremos vozes extraordinárias a declamar versos caóticos, tão pacificadores quanto proféticos.
Viajar no tempo é o que de mais certo nos irá acontecer quando partirmos. Levaremos connosco o que de mais valioso colecionámos do lado de cá do tempo, este que não se pode medir sem erro, este que não sabemos contar, este que decorre sem sentido. Carregaremos connosco coisas importantíssimas sem peso nenhum.
Imaginemos tudo isto, por momentos…

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