Imaginemos, por
momentos, uma época em que viajar do campo à cidade demorava vários dias.
Imaginemos o tempo necessário para percorrer cada pedaço de paisagem, cada
silêncio aqui e além entrecortado pelos pensamentos domésticos e rurais de cada
viajante, a saudade dos lugares e todas as complexas sensações de quem ansiava
por uma vida mais feliz. As casas caiadas abandonadas e os filhos deixados para
trás, num prolongado silêncio e com uma dor profunda a apertar o peito dos
viajantes. Imaginemos as distâncias percorridas e as lágrimas vertidas por
esses possíveis náufragos que, perplexos, apenas ambicionavam por um crepúsculo
melhor.
Imaginemos, por
momentos, uma época em que viajar para fugir da guerra e da destruição,
ambicionar a uma improvável hipótese de futuro, demorava vários castigos e
provações e inúmeros meses de dúvidas carregados de medos e desilusões.
Imaginemos os olhares absurdos e inexplicáveis que nos lançaram enquanto
tentávamos sobreviver, os hálitos a trevas e os contornos nebulosos de centenas
de visões infernais, o frio, o frio intenso dos invernos escuros e longos onde
se tremia na penumbra de formas impossíveis de descrever. Imaginemos, ainda, os
mares carregados de barcaças de refugiados, sobreviventes aflitos e já quase
sem propósito nenhum, esquecidos por alguém que os usou para enriquecer de
forma cobarde e vil.
Imaginemos tudo isto,
viajemos com a ideia triste dos nossos insucessos a encharcar-nos a alma
moribunda. Com os filhos ao colo ou pela mão, enfrentamos rituais sádicos em
campos de refugiados transformados em prisões apinhadas de sobreviventes
doentes, malnutridos, cansados, desesperados e tão, tão humanos viajantes como
nós.
Imaginemos!
Deste lado de cá do
tempo nunca imaginei uma coisa assim, e em que barco ou barcaça faria essa
viagem, decerto morreria antes de tentar sequer sobreviver.
Náufrago, com nenhuma
salvação à vista, eis os meus últimos instantes. Exausto, luto contra os
elementos, nado com as poucas forças que me restam apenas para tentar adiar a
morte. Perplexo, assisto à chegada de uma equipa de emergência que resgata os
companheiros de viagem e de dor. Apago-me instantes antes de também ser
socorrido, e as luzes confusas do final de tarde extinguem-se vagamente de mim.
Imaginemos a hora
misteriosa em que partiremos.
Em que porto
desconhecido deixaremos de existir? Quem iremos encontrar, com que rapidez
acontecerá essa viagem no tempo? Seremos transmovidos para um outro período
onde uma infinidade de coisas inúteis passará veloz à nossa volta, objetos
impossíveis e absurdos de tonalidades inexistentes. São elementos esquecidos, e
escutaremos vozes extraordinárias a declamar versos caóticos, tão pacificadores
quanto proféticos.
Viajar no tempo é o que
de mais certo nos irá acontecer quando partirmos. Levaremos connosco o que de
mais valioso colecionámos do lado de cá do tempo, este que não se pode medir
sem erro, este que não sabemos contar, este que decorre sem sentido.
Carregaremos connosco coisas importantíssimas sem peso nenhum.
Imaginemos tudo isto,
por momentos…
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