sábado, 14 de janeiro de 2017

45 - ANO NOVO



Partir para parte incerta seria o verdadeiro sinal da nossa força, conhecer o que se torna impercetível, o não das coisas que nos cercam, anseio dúbio que se tornou parte de mim a cada novo instante. Sufocamos onde existimos, balançamos ao vento, levemente, e escutamos vozes que se misturam ao longe formando esta estranha melodia. Fazemos parte deste lugar onde existimos e não existimos, uma parte perdida no tempo e no espaço, uma esquina, uma parede, um pedaço de vazio sombrio onde emergem luzes e sinais contínuos que saltam por cima desses rumores e dizem: - Aqui estamos!

O que nos rodeia é a vida, que também é vida de outros, a infiltrar-se como uma doença para dentro dos pulmões, e respiramos irrefletidamente essa atmosfera que nos causa de imediato uma sensação de estranheza. Aqui espera-se, perde-se tempo, perde-se o tempo de maneira surreal, e depois alguns sinais sonoros, intercalados por números e letras a piscar, quebram a nulidade do lugar alterando os ritmos dolentes de quem passou horas à espera de coisa nenhuma. Onde estou não sopra o vento, apenas as pessoas movimentam o ar ao deambularem por corredores iluminados, alheias ao passar do dia, meio perdidas. Tentam encontrar a sua alma por entre outras que vagueiam pelos mesmos corredores iluminados, investigam o que não entendem, procuram algo de novo para pesquisar, e fazem-no todos os dias da mesma maneira.

Sonho agora por não conseguir sonhar depois a paz por que anseio. Estendo o braço, estico-o até a mão alcançar a parede vagamente rugosa onde me apoio. Sinto-me parte desse lugar onde já não estou e fico perturbado. A água toda que vejo à minha volta aprisiona a única parte de mim que sente a solidez de um chão, é o convés de uma embarcação que já abandonei, e depois chega uma viatura que me arrasta para além das muralhas eletrificadas do cárcere mais seguro que alguma vez foi construído. Entro sem armas no recinto, as personagens não parecem seres naturais, coisas naturais, estou intranquilo, estou preso e tenho medo. Ali foram conduzidos os prisioneiros mais perigosos que a civilização moderna viu nascer, seres artificiais quase tão naturais como eu, e a sua naturalidade louca é a maior das estranhezas deste lugar. Não queria estar aqui, sinto-me tão doente como os verdadeiros alienados e loucos desta instituição. O natural é que é o estranho, e o Mago já o sabia, o natural era o estranho e o diferente, e sentia-o tal como todos a quem a civilização fez nascer segunda vez.

Acaba o ano, termina mais um ano e eu sinto cansaço…

Por preguiça escrevi muito menos do que devia, evitei o conflito físico com as minhas vozes, com as conversas invisíveis e improváveis, e nem sei se acredito mais em Deus, se apenas no Mago, se apenas no cansaço que me permite ainda ter forças para escrever.

Um novo ano chega em breve, muito em breve, talvez nele eu me venha a reencontrar numa qualquer praia pequena e deserta, onde três dias de férias isolado do mundo fariam toda a diferença.

Não quero partir, quero ver o ano novo dentro de uma pequena caixa de cartão a passar tão depressa como todos os outros que acabaram antes dele, como este que hoje acaba, como o anterior, como o que deu fim ao milénio e o seu gémeo, o último ano do milénio anterior.

Sinto uma infância e uma libertação, regresso a um tempo onde as sinto, eis aqui a nova sombra de uma encarnação anterior.

Afoguei-me, de certo modo, desci essa escada íngreme que não desejava conhecer, e risquei a folha branca de pequena gramagem com o lápis afiado, sempre no mesmo lugar, até a rasgar, e regressei ao lugar onde sabia que dificilmente iria sobreviver sem ajuda. Era o tempo em que a raiva fazia parte do quotidiano e representava as emoções e as falas e o conhecimento por inteiro. Fomos ensinados a renascer esquecendo tudo o que fomos, e adaptámo-nos à nova vida que nos foi dada, como o ano novo que nasce amanhã, e o fio da narrativa some-se e ofusca as emoções, constantemente. Quem somos? Deixou de interessar, e é tão difícil lembrarmo-nos do ontem, é cada vez mais difícil olhar para o passado com os olhos que o passado merece. Seremos nós todos partes impercetíveis de um gigantesco romance falhado? Demasiados para contar, demasiados para importar, maravilhas pequenas a imaginar o que o futuro terá para oferecer, que palavras terá o ano novo escondido, que rumores, que preocupações, que experiências…

Somos loucos à deriva neste gigantesco hospital psiquiátrico, e amanhã há fogo de artifício para festejarmos a nossa permanente loucura. Meia-noite, o mundo festeja à meia-noite a entrada do novo ano.

Conseguiremos sair desta ilha para onde nos atiraram, nem que seja a nadar, nem que seja de avião, escondidos no porão de carga como nos filmes de espiões do século passado, antes tentar que morrer à fome e à sede neste lugar.

Amanhã acaba o ano, e festejaremos a entrada do novo com pompa e circunstância. Na nossa casa, a dormir...

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