Partir para parte
incerta seria o verdadeiro sinal da nossa força, conhecer o que se torna
impercetível, o não das coisas que nos cercam, anseio dúbio que se tornou parte
de mim a cada novo instante. Sufocamos onde existimos, balançamos ao vento,
levemente, e escutamos vozes que se misturam ao longe formando esta estranha
melodia. Fazemos parte deste lugar onde existimos e não existimos, uma parte
perdida no tempo e no espaço, uma esquina, uma parede, um pedaço de vazio
sombrio onde emergem luzes e sinais contínuos que saltam por cima desses
rumores e dizem: - Aqui estamos!
O que nos rodeia é a
vida, que também é vida de outros, a infiltrar-se como uma doença para dentro
dos pulmões, e respiramos irrefletidamente essa atmosfera que nos causa de
imediato uma sensação de estranheza. Aqui espera-se, perde-se tempo, perde-se o
tempo de maneira surreal, e depois alguns sinais sonoros, intercalados por
números e letras a piscar, quebram a nulidade do lugar alterando os ritmos
dolentes de quem passou horas à espera de coisa nenhuma. Onde estou não sopra o
vento, apenas as pessoas movimentam o ar ao deambularem por corredores
iluminados, alheias ao passar do dia, meio perdidas. Tentam encontrar a sua
alma por entre outras que vagueiam pelos mesmos corredores iluminados,
investigam o que não entendem, procuram algo de novo para pesquisar, e fazem-no
todos os dias da mesma maneira.
Sonho agora por não
conseguir sonhar depois a paz por que anseio. Estendo o braço, estico-o até a
mão alcançar a parede vagamente rugosa onde me apoio. Sinto-me parte desse lugar
onde já não estou e fico perturbado. A água toda que vejo à minha volta
aprisiona a única parte de mim que sente a solidez de um chão, é o convés de
uma embarcação que já abandonei, e depois chega uma viatura que me arrasta para
além das muralhas eletrificadas do cárcere mais seguro que alguma vez foi
construído. Entro sem armas no recinto, as personagens não parecem seres
naturais, coisas naturais, estou intranquilo, estou preso e tenho medo. Ali
foram conduzidos os prisioneiros mais perigosos que a civilização moderna viu
nascer, seres artificiais quase tão naturais como eu, e a sua naturalidade
louca é a maior das estranhezas deste lugar. Não queria estar aqui, sinto-me
tão doente como os verdadeiros alienados e loucos desta instituição. O natural é
que é o estranho, e o Mago já o sabia, o natural era o estranho e o diferente,
e sentia-o tal como todos a quem a civilização fez nascer segunda vez.
Acaba o ano, termina
mais um ano e eu sinto cansaço…
Por preguiça escrevi
muito menos do que devia, evitei o conflito físico com as minhas vozes, com as
conversas invisíveis e improváveis, e nem sei se acredito mais em Deus, se
apenas no Mago, se apenas no cansaço que me permite ainda ter forças para
escrever.
Um novo ano chega em
breve, muito em breve, talvez nele eu me venha a reencontrar numa qualquer
praia pequena e deserta, onde três dias de férias isolado do mundo fariam toda
a diferença.
Não quero partir, quero
ver o ano novo dentro de uma pequena caixa de cartão a passar tão depressa como
todos os outros que acabaram antes dele, como este que hoje acaba, como o
anterior, como o que deu fim ao milénio e o seu gémeo, o último ano do milénio
anterior.
Sinto uma infância e
uma libertação, regresso a um tempo onde as sinto, eis aqui a nova sombra de
uma encarnação anterior.
Afoguei-me, de certo
modo, desci essa escada íngreme que não desejava conhecer, e risquei a folha
branca de pequena gramagem com o lápis afiado, sempre no mesmo lugar, até a
rasgar, e regressei ao lugar onde sabia que dificilmente iria sobreviver sem
ajuda. Era o tempo em que a raiva fazia parte do quotidiano e representava as
emoções e as falas e o conhecimento por inteiro. Fomos ensinados a renascer
esquecendo tudo o que fomos, e adaptámo-nos à nova vida que nos foi dada, como
o ano novo que nasce amanhã, e o fio da narrativa some-se e ofusca as emoções,
constantemente. Quem somos? Deixou de interessar, e é tão difícil lembrarmo-nos
do ontem, é cada vez mais difícil olhar para o passado com os olhos que o
passado merece. Seremos nós todos partes impercetíveis de um gigantesco romance
falhado? Demasiados para contar, demasiados para importar, maravilhas pequenas
a imaginar o que o futuro terá para oferecer, que palavras terá o ano novo
escondido, que rumores, que preocupações, que experiências…
Somos loucos à deriva
neste gigantesco hospital psiquiátrico, e amanhã há fogo de artifício para
festejarmos a nossa permanente loucura. Meia-noite, o mundo festeja à
meia-noite a entrada do novo ano.
Conseguiremos sair
desta ilha para onde nos atiraram, nem que seja a nadar, nem que seja de avião,
escondidos no porão de carga como nos filmes de espiões do século passado,
antes tentar que morrer à fome e à sede neste lugar.
Amanhã acaba o ano, e
festejaremos a entrada do novo com pompa e circunstância. Na nossa casa, a
dormir...
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