segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

44 - NATAL





 A ilusão preciosa atinge a superfície da terra naquele preciso ponto e lugar onde a humanidade já não tem solução. Somos uma espécie em vias de extinção, e turvamos sistematicamente as teorias Darwinianas com sombras e pesadelos. A evolução do ser humano é puramente metafísica, é um eterno combate contra a sua constante e gritante desumanidade.
As notícias encharcam-nos com informações desconfortáveis de violência extrema e crueldade desmesurada que confirmam a nossa estupidez. Os noticiários afirmam, com clareza, que somos uma espécie mentirosa e sem solução, uma espécie que procura a ruína, se entretém a modificar os outros, a moldar os outros, a combater pretensos inimigos, a reformar o irreformável e a causar um permanente estado de irrequietude, medo e destruição.
Que emendas ou remendos conseguirão reformar o homem se reformar é não ter emenda possível? Isso mesmo o Mago afirmou. O homem não se entende, diz-se preocupado com o mal e a injustiça do mundo, mas a que mundo pertence, e de que males fala se cada indivíduo transporta em si diferentes conceções para uma mesma realidade? O mundo de cada ser humano não se pode partilhar e dificilmente se modificará, é um universo irrepetível e transcendente de paisagens íntimas e revolucionárias em permanente convulsão.
Não somos uma espécie bondosa ou caritativa ou delicada ou poética ou evoluída, somos semelhantes à mesma lama que desaprovamos, somos sacristãos a quem nada importa desde que o desprezo que nutrimos uns pelos outros regresse à alma grosseira e anárquica de onde brotou. Não nos interessam as guerras longínquas, as crises alheias, as mortes de quem não conhecemos, o sofrimento de quem nada nos diz. De verdade, não nos interessa subir ou descer, avançar ou recuar, pois nascemos decadentes e loucos, alienados, aristocratas, burgueses, miseráveis, pobres, anarquistas, grosseiros, guerreiros, nómadas, sedentários, inaptos, amorais…
Todo o pensamento é expresso por palavras invisíveis cada vez mais degradadas e deploráveis. Não é possível adjetivar a estupidez do homem, não é de todo possível compreendê-lo por não existirem palavras capazes de tornar compreensíveis as razões que fundamentam a humana condição.
Somos uma espécie inadaptada em vias de extinção, praticante de rituais ocultos dos quais reencarnamos ainda mais degradados do que em vidas anteriores. A maldade é a própria ironia com que nos vestimos, é orgânica e endémica, e opera por debaixo das mais finas camadas da pele, quase à superfície. Dormimos com a maleficência a passar ao nosso lado, a laçar a vida dos outros num ritmo feroz, tão repugnantes, tão contentes e alheios e solenes, plenos de perpétuo esvaziamento. Sentimos o quotidiano a esvair-se em sangue, lá longe, e negamos esta realidade dos factos que desejamos sempre omissa. Outro é o nosso jardim, é sempre um outro enquanto nele nasça uma flor ou um fruto. Lá em baixo, lá bem ao fundo, sei lá dos jardins dos outros e das suas flores e de seus frutos, quero lá saber se moram em barracas, ao relento, se passam fome ou as estrelas os escolheram para sofrerem o derradeiro castigo de maneiras indizíveis. O homem medita através de uma física adulterada, e julga que vive uma vida distinta da dos outros animais. Despertaremos quando morrermos numa fria tarde de inverno, num dia tristonho que nunca existirá. O homem é o vigilante supremo, é o espião máximo, é o mais repelente dos seres à face da Terra.
Somos o animal que julgamos não existir.
Vi, e não queria acreditar, vi o maior de todos os fingimentos egoístas, mas talvez estivesse embriagado, talvez fosse mentira.
Estava sóbrio, e fui-me embebedar.
Escuta, ouve esta doença a cavalgar pela atmosfera como um trovão a atravessar-se no meio do caminho, a esmagar o resto das partes atomizadas que restam desta humanidade que já não nos pertence.
Que negócios são estes que nos derrotam à priori, criados por homens que se esqueceram por completo da generalidade da vida. Feitos os seus “negócios”, sentam-se nas poltronas a fumar os charutos e a sentirem-se todo-poderosos sem compreender a miserável condição que estenderam à escala global. Os que mandam riem-se no topo dos seus templos de cristal, os que mandam fazem o que querem sem nunca sentir, os que mandam consideram-se homens de ação, e espezinham a humanidade amorfa e frágil que se entretêm a escravizar. Contemplam o espetáculo dantesco deste mundo, a confusão grandiosa de impérios e culturas, e deliciam-se com o cheiro a novo, um cheiro que dura menos que um pequeno instante, pois existem milhares de novos “negócios” para tratar. Um Natal feito de escravatura é a lei da vida, e não há outra lei…
A afirmação suprema de todos os propósitos reside na abdicação estática do Buda, e tal como o Mago afirmou, este mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.

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