Tecer, bordar o tecido
da obra é toda a distração que procuro, o único vício onde passei a apreciar
melhor as cores, os sons e as formas delicadas dos recantos da minha estalagem.
A minha religião passou a ser esta literatura em que nos perdemos como um barco
a navegar o prólogo de um futuro ameaçado.
Todo o sofrimento é
solitário neste rio superior onde passa a vida, mas nada se compara ao amor que
se sente, não correspondido. É a dor suprema, o cabo das tormentas
intransponível, o verdadeiro Adamastor Camoniano.
O nosso relógio antigo
mostra aquele que fomos na infância, criança com medo até de adormecer. O
passado faz-me frio, devolve mistérios transcendentes e choro na noite como
esse menino com medo que outrora fui. Que catraio saltava e corria nos telhados
quebradiços das casas da aldeia? Essas coisas foram também realidade, e eu
tive-as, e já não tenho, nem as memórias que perdi sem acreditar nelas, sem
saber se as vivi numa outra lua qualquer, e experimento agora o vício solitário
desta arte que me distrai e dissimula.
Raciocino, melhor seria
não raciocinar, mas eu estou a refletir e as horas passam mais lentas nestes
diálogos que gostaria de ter tido contigo. Mago, tu que escutas melhor do que
ninguém, fala comigo, diz-me qualquer coisa simbólica que me ajude a
acreditar.
- Pois sim. – dizes-me
tu – Pois sim, mas para que te serve o raciocínio se é a pior espécie de sonho?
Continua dormindo…
Vou até lá fora cheirar
a manhã. É quase meio-dia e nada ainda aconteceu. Apenas o gato a deambular
pela casa, a pedir comida, a pedir afagos, a ser gato dolente que se enrola
perto do fogão de lenha onde o tacho já ferve. Vou até lá fora esticar as
pernas e cheirar a manhã. Andar faz-nos regressar quase inteiros a lugares da
nossa vida que subitamente revivemos.
Mais uma vez recebo com
lágrimas nos olhos as reanimações do passado, e misturam-se na boca sabores
distintos a cada passo meu. Fico mais consciente desses outros por quem já
passei, etéreos e afastados e passados, atores em cenários de outros séculos a
quem emprestei malícias e cansaços. Primeiro foi a parte mais medieval de quem
já fui a regressar à memória, depois a parte mais barroca e menos
inevitavelmente perdida, mais tarde a parte de mim que encarou os primeiros
anos do século vinte, depois a que sofreu o embate da segunda grande guerra,
depois aquela que eu sou agora, a que julga que por tantas memórias passadas
revisitadas talvez nunca estejamos mortos, nada disto seja a morte, apenas uma
vida feita de sonhos, com prelúdios de atividades que nos confessam esta
contínua imersão num mar carregado de ondas sombrias, um mar agitado onde o próprio
viver já será morrer, como o Mago dizia.
Somos os povoadores de
nossos sonhos.
Talvez seja um absurdo
relatar esta série de sensações quando o agora se ocupa de coisas
complicadamente bem mais simples. Materializações desgarradas de futilidades
nebulosas, atitudes interiores da alma que desmembraram profundamente o ser por
vezes ingénuo que as fabricou.
O nascimento das
palavras é o tempo de sonhadores, de poetas e artistas. Essas entidades
complexas nascem de maneiras muito distintas, mas os sonhadores não se
preocupam com a sua forma, peso ou dimensão. Eles praticam a ação pura de
sonhar para melhor extraírem os vastos e variados prazeres da vida, vida que é
essencialmente um estado mental, vida que é essencialmente ficção… mas as
nossas vidas não nos ensinam o que fazer com os sonhos, ou que gestos devemos
praticar, ou sequer se nos devemos erguer, desoladamente, em esforço contínuo,
para refazer os sistemas metafísicos onde nascem as palavras, e as nossas vidas
tão pouco nos fornecem as explicações mais ou menos filosóficas de como tudo
isto se constrói.
O Mago sofria, talvez
fosse mesmo o maior dos sofredores, e sonhava feliz com o seu pessimismo
inteiro que dizia não ter. Necessitava do seu pessimismo para ser um sonhador
feliz, era isso que ele dizia, sofria em coisas reles, feria-se com coisas tão
banais, e sabia que ao pé das suas todas as outras dores lhe pareciam falsas ou
mínimas, pois ele era um prisioneiro encarcerado nas suas próprias imagens,
numa qualquer outra parte da existência humana onde se refugiou. E foi isso
mesmo que um dia resolveu exclamar:
-
“Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha
vida. Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca
prestei muita atenção. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o
que nem podia imaginar. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas
elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam.”
Deus criou esta
impossibilidade de te conhecer, desejava ver-te ao virar de uma qualquer
esquina e poder conversar contigo, verdadeiramente, num café de bairro, e
ficarmos ali os dois, horas perdidas, a falar sobre hortas e pomares, sobre a quinta
que foi só um teu sonho.
É já uma saudade que eu
tenho não poder escutar o som da tua voz, está guardada na minha memória, numa
passagem de nossas vidas em que nos encontrámos uma tarde, e duas, e três, e
depois uma semana inteira, para perscrutar as árvores da beira da estrada e
algumas paisagens de algumas vidas que não inteiramente interiores.
Deus criou esta e
tantas outras impossibilidades, tu e eu sabemos os paraísos que Deus poderia
perfeitamente ter arranjado, postos naquelas perfeitas ordens de existir…
Hoje é apenas mais uma
quinta-feira qualquer, ergo a cabeça e vejo de minha janela a manhã fria do dia
cinzento a existir. Descrevo-a neste papel imaginário, cada vez mais consciente
da minha mortalidade e esbatimento, descrevo-a, não como ela acontece, pois
sobre esta manhã de outono muito mais poderia ser dito. Doces palavras ocas de
um rio encantado onde eu e Pessoa molharíamos os pés, e daqui a pouco chegará
mesmo o meio-dia desta quinta-feira qualquer.
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