Os cisnes nadavam no
lago do parque, junto ao pequeno passeio que ladeava um vasto relvado acabado
de aparar. O cheiro da relva infiltrou-se pela retina e pelos poros de nossos
corpos num lento processo físico até ser um pedaço de nós, não mais um rumor de
graça esquecida com a qual sonhámos um dia. Sentados no banco do jardim
observámos o movimento aquático das aves. Fiquei desgostoso por termos
desaparecido desse instante tão depressa pois tínhamos demorado bastante a lá
chegar. Partimos, velozes, e os anos voaram com os cisnes para o mesmo espaço
ilusório onde ainda somos capazes de os recordar.
Hoje moramos neste
andar de onde nos chegam os sons de um piano tocado por um pianista que nunca
vimos. A música atravessa as paredes de pedra, difunde-se em nós, lentamente,
como o perfume da relva cortada naquele dia, e o rumor do teu sorriso aberto
ilumina as escalas repetidas da sonata que se estreita por entre os corredores
apertados do edifício onde fingimos viver. Os sons são iguais aos da
recordação, são audíveis até aqui neste lugar onde escrevo. A melodia invade a
estátua de carne e osso em que me transformei e eu capto a rítmica angustiada
da bela composição.
A melodia misteriosa
foi-me devolvida através deste complexo procedimento, forma literária de
rememoração, onde a duração imaterial das ocorrências se regista à cadência
contemplativa do poeta que as consegue escutar.
Chegam a ser musicais
as palavras que se erguem, como fachos saudosos, na folha branca. Cinzelo as
fugas do tempo, uma a uma, com o mesmo cuidado de quem compõe emoções transladadas
de um oceano inóspito.
Gritam frases inteiras
no interior do meu cérebro. As vozes entram sem pedir licença e torturam-me até
à loucura. Estou de novo sozinho, sentado na cadeira de verga na varanda do meu
quarto. Medito diante da paisagem, observo o lago onde gostaria de regressar
para prosseguir viagem, incógnito, vestido com as mesmas palavras voadoras que
me ajudaram a endoidecer. Cresci embalado por dezenas de histórias emocionantes
escondidas em outros tempos existentes em mim.
O movimento das
estrelas convida à escrita, não vou sequer ponderar a razão da minha escolha. É
com os sons da noite, confidente emocionada de meus passeios, que melhor escuto
e me deixo enganar. Que mar somos quando nos deixamos levar pela onda da maré
noturna?
Vagueio por entre a
milimétrica noção dos gestos praticados pelas minhas mãos. Os dedos pressionam
as teclas mágicas do piano negro onde nascem as palavras não ensaiadas. Penso
uma outra coisa, por vezes coisa nenhuma, e escrevo exatamente a coisa nenhuma
pensada e repetida até à exaustão, siamesa da anterior. Os pensamentos assim
nascidos possuem entre si a mesma distância kandinskiana dos dizeres expressos
na desventura estrófica aqui gerada. Tirei depressa um instantâneo na tentativa
de obter a imagem do espaço minúsculo que separa esta razão da minha
insanidade.
Mais noite, mais
pensamentos, mais escrita, mais perfeita consciência da figura lunática em que
me vou construindo, vagabundo perdido na sombra húmida do lago dos meus sonhos
incompreensíveis à espera de acontecer.
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