sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

38 - VIVO NESTA LOUCURA ADORMECIDA EM MIM



Os cisnes nadavam no lago do parque, junto ao pequeno passeio que ladeava um vasto relvado acabado de aparar. O cheiro da relva infiltrou-se pela retina e pelos poros de nossos corpos num lento processo físico até ser um pedaço de nós, não mais um rumor de graça esquecida com a qual sonhámos um dia. Sentados no banco do jardim observámos o movimento aquático das aves. Fiquei desgostoso por termos desaparecido desse instante tão depressa pois tínhamos demorado bastante a lá chegar. Partimos, velozes, e os anos voaram com os cisnes para o mesmo espaço ilusório onde ainda somos capazes de os recordar.
Hoje moramos neste andar de onde nos chegam os sons de um piano tocado por um pianista que nunca vimos. A música atravessa as paredes de pedra, difunde-se em nós, lentamente, como o perfume da relva cortada naquele dia, e o rumor do teu sorriso aberto ilumina as escalas repetidas da sonata que se estreita por entre os corredores apertados do edifício onde fingimos viver. Os sons são iguais aos da recordação, são audíveis até aqui neste lugar onde escrevo. A melodia invade a estátua de carne e osso em que me transformei e eu capto a rítmica angustiada da bela composição.
A melodia misteriosa foi-me devolvida através deste complexo procedimento, forma literária de rememoração, onde a duração imaterial das ocorrências se regista à cadência contemplativa do poeta que as consegue escutar.
Chegam a ser musicais as palavras que se erguem, como fachos saudosos, na folha branca. Cinzelo as fugas do tempo, uma a uma, com o mesmo cuidado de quem compõe emoções transladadas de um oceano inóspito.
Gritam frases inteiras no interior do meu cérebro. As vozes entram sem pedir licença e torturam-me até à loucura. Estou de novo sozinho, sentado na cadeira de verga na varanda do meu quarto. Medito diante da paisagem, observo o lago onde gostaria de regressar para prosseguir viagem, incógnito, vestido com as mesmas palavras voadoras que me ajudaram a endoidecer. Cresci embalado por dezenas de histórias emocionantes escondidas em outros tempos existentes em mim.
O movimento das estrelas convida à escrita, não vou sequer ponderar a razão da minha escolha. É com os sons da noite, confidente emocionada de meus passeios, que melhor escuto e me deixo enganar. Que mar somos quando nos deixamos levar pela onda da maré noturna?
Vagueio por entre a milimétrica noção dos gestos praticados pelas minhas mãos. Os dedos pressionam as teclas mágicas do piano negro onde nascem as palavras não ensaiadas. Penso uma outra coisa, por vezes coisa nenhuma, e escrevo exatamente a coisa nenhuma pensada e repetida até à exaustão, siamesa da anterior. Os pensamentos assim nascidos possuem entre si a mesma distância kandinskiana dos dizeres expressos na desventura estrófica aqui gerada. Tirei depressa um instantâneo na tentativa de obter a imagem do espaço minúsculo que separa esta razão da minha insanidade.
Mais noite, mais pensamentos, mais escrita, mais perfeita consciência da figura lunática em que me vou construindo, vagabundo perdido na sombra húmida do lago dos meus sonhos incompreensíveis à espera de acontecer.

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