quarta-feira, 30 de novembro de 2016

37 - CORAGEM



Este eu que aqui acontece nada é de mim, é uma falsidade criada por um conceito estético que se sucede, não contínuo, sobressaltado, em dias intervalados. Tal como o Mago, não sei quem verdadeiramente sou por detrás desta irrealidade, sei que devo ser alguém, mas ao contrário dele, não pretendo vir a ser uma obra de arte, da alma pelo menos, conforme escreveu um dia. Não possuo a sua coragem, a sua filosofia nem a sua fulgurante estética literária, arte pura esculpida em calma e alheamento, flor absurda florescida em afastada beleza. Tudo no Mago era nítido, inevitável, de uma lógica soberba, tal como desejou…
Em comum sinto essa saudade do outro que eu poderia ter sido e que por vezes também me dispersa e sobressalta. Aconteceu mais tarde essa notícia, e quando me contaram olhei-me ao espelho com receio de já não me reconhecer. Perante a emoção eu nada declarei, a coragem abandonou-me num abandono de fim de dia. Tinha assistido à inevitável aproximação da encruzilhada. Sem coragem para embarcar, soçobrei de imediato à bifurcação do meu ser, pois não me podia rasgar ao meio em mil pedaços amargos e doces. Essa verdade fez-me espetador desiludido e esperançado. Perdi a guerra com o destino por ter vencido uma batalha ao destino, por ter sido bem mais cobarde que corajoso, e o espetador da vida do outro em que me tornei é a ironia de quem crescemos na vida assistindo à desilusão de sermos quem nos criámos e não a estratégica sombra verdadeira do milagre doce que a nossa falta de coragem desmontou.
Vazio… em pontuações distribuídas nesta paisagem branca de palavras intranquilas, arruamento antigo, vazio como a esperança, vazio insatisfeito de sons a recomeçar, estranhos à minha condição humana da qual gostaria de despertar. Vácuo amargo onde me exilei para escrever as frases onde me antevejo e procuro a coragem perdida em mim. O ser feliz tem de possuir palavras contentes, o jogo está precisamente em construir a figura que sou neste livro onde o Mago me ajuda a crescer, pensar em palavras desfeitas lendo a sua vida que se construiu inteira à custa das suas palavras desfeitas. Pensar é um desafio complicado, talvez inútil se nele não nos encontrarmos e se nada fizer sentido. Coragem é reconhecer os falhanços em imagens sucessivas e abrir a alma com esta tinta que dá vida às palavras e as faz nascer. Escrever é a reação necessária à ficção em que hoje vivi, essa moradia gigantesca por terminar, sem janelas de vidro nem telhados, sem pinturas definidas, apenas a cor cinzenta do betão abandonado na paisagem, a loucura da imensa piscina vazia que se estendia do interior para o exterior, a escadaria espiralada que dava acesso aos andares superiores de onde se vislumbravam as montanhas brancas e um enorme espaço vazio aberto entre dois grandiosos terraços abandonados.
Falhei.
Não previ um falhanço tão amargo, a minha coragem apenas me permite avançar acordado sem gozar por inteiro as sortes merecidas.
Esculpi-me numa cegueira esbatida com nuances de vida desejada nesse solar sonhado, sempre o mesmo solar sonhado, mesmo quando o descrevo de maneiras diferentes, ora recém-construído, ora em ruínas, ora nunca edificado. Estes elementos permitem-me ir construindo a sua imagem, que ainda é um mistério confuso. Sei que existe junto a um lago, meio escondido entre as altas árvores que o circundam e onde o imagino sem imaginar. É ele que me segreda as paredes de que se constrói, e as entradas e saídas e recantos e salas e quartos e salões e escadarias e corrimões e amplos corredores abobadados, é ele quem me segreda emoções nunca antes imaginadas e se revela, noturno, num recanto perdido da minha imaginação.
É lá que sinto melhor o tempo, exagerado, passado e futuro, sentado no meu cadeirão de verga a olhar o lago no imenso balcão do piso superior, com as pernas aconchegadas por uma manta quente de merino. Leio o livro onde um qualquer deus me criou a criança que nunca mais serei. Observo-me a mim próprio desterrado de emoções, e choro esse mendigo abandonado em que me transformei. Sem amor, sem filhos, sem amante, sem alma, sem paixão ou arte nenhuma, aquilo que tive, aquilo que nunca tive, e a alma inteira abre-se numa convulsão tremenda e luminosa, mais uma vez, e bate-me com um brinquedo de madeira, na cabeça, com violência, no meio do recreio onde os risos de algumas vidas não adultas se divertem com a situação. Estava distraído e agora dói-me a cabeça. Deixei-me apanhar pelas palavras vadias mais uma vez, risquei estas ideias e agora acredito que as vivi, ficaram entaladas na minha memória. Foi uma confusão voltar a relembrar essa dor imensa e fina que aqui rabisquei. Quando escrevo é isto que acontece, ganho alguma coragem e revisito as salas figuradas de outrora, detenho o olhar e a atenção pelos quadros aí expostos, recordações de outras eras e romances.
É quase uma doença esta coisa de escrever, fico perdido mesmo antes de acontecer, e só depois acordo, já quase meio-dia, com a saudade a arrefecer-me o sangue e a esfriar-me a pele e os ossos.
Coragem.
Mais tarde regressarei ao meu castelo antigo, o meu solar isolado onde viajo no tempo, onde escrevo e leio e sou o mais corajoso dos cobardes escritores.

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