Por mais inconsciente e
distraído que vagueie, continuo a inventar este longo monólogo que me confunde.
As lembranças chegam até nas tardes frias dos domingos de outono onde me deito
a examinar, com estranheza, a sala improvisada onde tudo acontece. Relembro os
recantos confusos onde se formam as imagens que decifro, e escrevo ainda mais
palavras perdidas para tecer os tapetes do meu castelo em ruínas. Sigo com os
olhos os contornos das torres e das muralhas mais altas desta habitação,
toco-lhes para experienciar a sensação de ser pedra antiga e isolada.
Tamanha sonolência é a
bênção que alimenta as horas em que escrevo.
Ontem tentei escrever,
juro que tentei, e o processo ficou desfeito por uma infiltração no andar mais
alto dos meus ruídos. Os sons escaparam e devolveram-me a mesma monotonia vazia
de sempre. Fiquei de novo fechado no presente de ontem, triste e resignado, a
imaginar como seriam essas palavras fugidias. Considerei possível recuperar parte
delas na tarde obscurecida, mas as que hoje me visitam são necessariamente
outras. De nada vale chorar a perda das palavras não acontecidas, elas tinham
de permanecer anónimas. Chamá-las-ei longínquas recordações de um domingo
absurdo e difuso, misteriosas aprendizagens por realizar, invisíveis relatos
literários de escalas perenes, suposições inconsistentes e fictícias, palavras
mortas à nascença por uma falha na engenharia das canalizações. As ruas
esquecidas onde desaguaram são pura imaginação, nenhum arquiteto as ergueu e
nenhum poeta foi capaz de conter a enxurrada de palavras perdidas dentro do meu
cérebro material. O meu domingo foi dia de descanso, mas só aconteceu por falha
técnica nas tubagens do sistema interno das palavras, e eu sofri em silêncio
pela meditação não sobrevivente dos meus pensamentos perdidos.
A fronteira entre o
ontem e o agora está cada vez mais ténue, os sons que chegam do mar oceano
embrutecido esbatem as diferenças entre o que é o escuro e o lugar iluminado.
As ondas gigantescas galgam o pontão, arrastam-nos pelo mar adentro até desfazerem
os nossos corpos físicos e desnudados que ali se amavam. Passámos a ser a água,
a espuma e a maré, chorámos as lágrimas todas que já tínhamos vertido, e
depressa voltámos a ser esta vida pronta e triste em que nos convertemos e nos
enganamos, apesar de sabermos o quanto nos amamos. O mar embrutecido soa dentro
de nós, e voltamos a salgar os nossos corpos um no outro pelas noites inteiras
do nosso segredo, e são tantas as noites que passamos sozinhos em enganos
desprovidos de emoção. Aquilo que nelas se perdeu jamais se recuperará, é o erro
amaldiçoado em que nascemos, memória criada num universo paralelo onde somos
todo o mar existente e toda a entidade noturna que nele se alaga de emoção. O
mar todo, a noite inteira, a praia, a música das palavras nunca proferidas, a
onda fria onde morremos, onde vivemos, incorpóreos, mais humanos que as coisas
vagas e humanas do real. Do pontão vemos chegar o mar e as palavras, nus,
amantes eternos, foi lá que nos descobrimos e depois passeámos, de mãos dadas,
à beira-mar.
Quando morrer vou
sentir tudo isto num repente, de coração parado e corpo gélido, tal como a água
e o mar e a tarde já noite em que me escrevo. Quando morrer vou pairar
invisível por cima das coisas físicas e salivar de prazer ao descobrir o que
está para além desse segredo. Quando morrer ninguém se interessará pelas
palavras que deixei perdidas no meu domingo, ou do que me levava a escrever
pela praia fora, ou porque tive receio de amar quem mais merecia, ou porque fui
um dia consciente, fútil e sensível, como o Mago que por vezes escuto, e tão
abstrato como a memória de mim.
Se alguma vez leres
estas palavras, se fui capaz de te transportar até este estranho lugar, fixa os
teus sonhos em palavras … tão abstratos como a memória de ti.
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