terça-feira, 1 de novembro de 2016

29 - QUE TEMPO É ESTE QUE NOS PERSEGUE E TRANSFORMA



Que prosa é esta a que assisto se lá fora as nuvens refratam todas as cores? Trágico é estar sentado a assistir ao espetáculo pela janela, mais trágico seria não registar em prosa a externa coisa de mim. O quadro mostra o azul do céu, nuvens a mudar de cor, casas antigas e desabitadas, árvores a bailar ao ritmo tranquilo da tarde outonal, parágrafos de pensamentos antigos reconstruídos ao acaso, séries descompassadas de palavras, folhas secas que ainda vivem ao voar, o verde húmido da vegetação iluminada pela luz morna do sol, a ponte geométrica, a serrania que cerca a cidade, arruamentos, viaturas, aves e um alarme que toca, matriz invisível construída para me orientar. Dentro de minha cabeça soa a campainha e eu abano em plena tarde, inconsciente. Continuo vivo a fazer parte deste sonho, a vida ao acaso, cada vez mais cansado, e a escrita desfaz o sentido das coisas, destrói o contentamento de me sentir real, não quero ser real mais uma vez.
Penso, leio, escrevo o texto inventado. Tento encontrar sentido para os ritmos da destruição humana, o universo envergonhado contempla-nos enquanto seguimos robóticos o caminho da ravina. Eu estou nessas imagens, vou ficando menos alma, mais tinta de pena seca e resignada, mais sombra sem verdade, e volto de novo a mim e ao quadro que vejo da janela da sala. Traço a régua e esquadro a razão de estar aqui, mas porquê se o que quero é só dormir. Que utilidade têm estas palavras que me acompanham? Falho, pasmo, escrevo o falhanço prodigioso que em mim se anuncia, gigantesco e louco, e o elemento vital da minha loucura é esta satisfação tardia que floresce em letras de palavras que ninguém irá escutar.
O sol brilha na tarde esculpida em ternura e eu para aqui, lúcido e tristonho, a erguer despropósitos espirituais. Estou falido de inspiração e procuro ânimo nos sonhos de noites mal dormidas. É lá que passo as horas indeléveis dessas aventuras que acabo por esquecer. Prefiro esse lado onde as rosas florescem em canteiros circulares e os mistérios se esbatem ao redor dos quintais do meu contentamento. Esse é um mar interior onde não existe sonolência nem desprazer, de um azul igual aos sonhos azuis da cor do céu onde voamos, de pés não assentes na terra, menos abstratos, muito maiores, muito mais possíveis. O tempo não se gasta exageradamente, não se abandona, exausto, num cárcere indeterminado. Aí somos poetas viajantes em caminhos de ferro dourados, avançamos na viagem em carruagens sensíveis e azuis, sem peso nem tristeza, capazes de abrir as portas das nuvens que amámos na infância e que agora mesmo voltamos a atravessar. Sim, os sonhos são as coisas boas da vida onde passeamos, e no exato momento em que o coração se sente menos desterrado, acordamos novamente no chão do quarto como mendigos que somos, não azuis, de faces lívidas e nervos destroçados.
Este presente é a terra do nunca, onde passou esse tempo que não tornaremos a ter? Mago…evocaste quem foste e nunca mais serás, o que tiveste e não tornarás a ter, mas como o fizeste se a tua alma física se esfriou? Chorei e depois sorri. Sou um louco desmiolado, o Mago meu camarada nunca se evocou, e muito menos a sua alma física se esfriou, pois não existem almas físicas de mendigos atormentados, não existem almas físicas, ponto!
Gastei quase duas horas a descobrir estas imbecilidades. Agora as nuvens lá fora são douradas como as carruagens maravilhosas desses sonhos onde viajamos. Dói-me o peito por não saber das chaves com que se abrem as portas deste céu. Somente o Mago soube esculpir em palavras o verdadeiro sofrimento que é conseguir escutar os passos do tempo. Treze linhas de um só parágrafo chegaram, e num repente se fez minha a sua dor.

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