O planeta está possuído
por um demónio a quem vendeu a própria sombra. Isolámos corpo e alma na
estagnação dos nossos inteiros fingimentos, e aprendemos a mostrar somente o reflexo
maligno em que nos transformámos. Habituámo-nos a percorrer a vida flutuando
sobre as sensações mais íntimas que cedo aprendemos a desprezar, com um tédio
profundo, um tédio tão enraizado em nós que nem demos conta que acabávamos de
cumprir a mais maligna das missões: aligeirar o nosso raciocínio para que o
amorfismo se instalasse no mais profundo de nós. Então porque nos afligimos com
o que ajudámos a acontecer?
O bruxedo enfeitiçou
coisa nenhuma, há décadas que tudo estava enfeitiçado, os magos charlatães
aplicaram os feitiços e poções ao longo dos anos, espalharam a essência da
maldade, uns pelos outros, em todos os recantos do planeta, trabalharam com
afinco e dedicação, trabalharam ininterruptamente, espetaram com mestria e
malvadez os seus alfinetes numa prática vudu exercida sem complicações. O tédio
instalado era de tal ordem que os bruxos nem necessitaram de se esconder, infligiram
as suas práticas maquiavélicas com tranquilidade e notável eficácia. Não
deveria existir tanta surpresa perante o que agora aconteceu, outra coisa não
seria de esperar. O mistério do declínio da razão nada tem de misterioso, as
dores e raiva que sentem os supostos iludidos soam a falso, são latidos imbecis
e inseguros de quem revela a pequenez em que se transformaram. Beberam da malga
do tédio e da nulidade a vida inteira e a sensação de vazio que agora os rasga
ao meio apenas prova a sua descrença e total artificialidade. A mitologia
inócua a que se dedicaram estava minada de futilidades, deformou-lhes a humanidade
e o caráter, roubou-lhes a alma e o raciocínio, e os bruxos ajudaram a alimentar
esses momentos de glória vã com caldos e poções envenenadas. A descrença
generalizada indicou-lhes o caminho negro a percorrer. Avançaram, insensíveis e
grotescos, sem abrandar, sem qualquer imaginação, amorfos e entediados, com um
tédio tão profundo, que nem saudades sentiam de nada. Acoplavam as naves
caricatas em que se transformaram umas às outras, num prolongado exercício de
ilusão. Assim seguiram os satélites agigantados, por estradas e universos
indefinidos, conjuntos incoerentes que se prolongaram no vácuo negro que os
enchia.
O horror
consubstanciou-se, e o aborrecimento entediado de todos deu lugar ao choque e
ao pavor. Instalou-se um mal-estar de alma tão grande que foi capaz de alterar
a maciez física dos corpos dolentes. Os bruxos fizeram bem o seu trabalho,
contudo talvez tudo tivesse acontecido da mesma maneira sem necessidade dos
seus perfumes. O universo cresceu, luminoso, quente, sombrio e gélido, veloz e infinito,
tentou inundar a existência humana que já se tinha deixado entediar por todos
os poros e acordara pálida sem saber o que pensar ou o que mais querer. Sabia,
contudo, que não era bem isto que queria, conhecia o suficiente para o saber,
mas o tédio profundo tinha-a soterrado sob uma muralha de vacuidade.
A angústia afaga quem
sempre a desejou, e por isso se deixou enfeitiçar. O que agora parece ilógico é
fruto dessa vontade entediante que aceitou a razão doente. As almas estavam
enfermas e não procuraram a cura, antes tentaram escamotear a realidade que tão
bem conheciam. Se os venenos enfeitiçados foram bebidos com satisfação, porque
tanta falsa incredibilidade? O vencedor infiltrou-se e talhou a vitória com
argumentos abjetos. O caminho estava facilitado pelo trabalho perfeccionista
dos feiticeiros, e o que parecia ridículo, boçal, desajustado, extremista,
hedonista e incompreensível, foram só carícias gloriosas que os entediados
vestiram com conforto e descontração. A brisa da mudança chegou, com estrondo.
O episódio ilógico explodiu no momento propício, mas o peso astronómico de
tanto poder queimará o rosto e a alma do profeta que tudo dará a perder,
esplendidamente.
O tédio absoluto e
insuportável contempla-se com o olhar que merece, é apenas uma imensa rua
deserta com gente nela, tão difícil de compreender. Este final improvável bem
depressa se transformará em mau princípio, essa é a minha certeza, a coisa
nítida que vislumbro com a clareza de um relâmpago. A história esquece-se com
tremenda rapidez, o que dela se devia lembrar não conforta nem interessa aos
entediados desta terra, sempre alheios e ausentes a ver passar a vida que já
passou e que os não via.
O acidente aconteceu
com a importância que tem uma vida no universo, e nada de humano há no
infinito, apenas o peso do tédio e a revolta sufocante dos que julgam existir
já estando mortos.
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