domingo, 6 de novembro de 2016

32 - TÉDIO



O planeta está possuído por um demónio a quem vendeu a própria sombra. Isolámos corpo e alma na estagnação dos nossos inteiros fingimentos, e aprendemos a mostrar somente o reflexo maligno em que nos transformámos. Habituámo-nos a percorrer a vida flutuando sobre as sensações mais íntimas que cedo aprendemos a desprezar, com um tédio profundo, um tédio tão enraizado em nós que nem demos conta que acabávamos de cumprir a mais maligna das missões: aligeirar o nosso raciocínio para que o amorfismo se instalasse no mais profundo de nós. Então porque nos afligimos com o que ajudámos a acontecer?

O bruxedo enfeitiçou coisa nenhuma, há décadas que tudo estava enfeitiçado, os magos charlatães aplicaram os feitiços e poções ao longo dos anos, espalharam a essência da maldade, uns pelos outros, em todos os recantos do planeta, trabalharam com afinco e dedicação, trabalharam ininterruptamente, espetaram com mestria e malvadez os seus alfinetes numa prática vudu exercida sem complicações. O tédio instalado era de tal ordem que os bruxos nem necessitaram de se esconder, infligiram as suas práticas maquiavélicas com tranquilidade e notável eficácia. Não deveria existir tanta surpresa perante o que agora aconteceu, outra coisa não seria de esperar. O mistério do declínio da razão nada tem de misterioso, as dores e raiva que sentem os supostos iludidos soam a falso, são latidos imbecis e inseguros de quem revela a pequenez em que se transformaram. Beberam da malga do tédio e da nulidade a vida inteira e a sensação de vazio que agora os rasga ao meio apenas prova a sua descrença e total artificialidade. A mitologia inócua a que se dedicaram estava minada de futilidades, deformou-lhes a humanidade e o caráter, roubou-lhes a alma e o raciocínio, e os bruxos ajudaram a alimentar esses momentos de glória vã com caldos e poções envenenadas. A descrença generalizada indicou-lhes o caminho negro a percorrer. Avançaram, insensíveis e grotescos, sem abrandar, sem qualquer imaginação, amorfos e entediados, com um tédio tão profundo, que nem saudades sentiam de nada. Acoplavam as naves caricatas em que se transformaram umas às outras, num prolongado exercício de ilusão. Assim seguiram os satélites agigantados, por estradas e universos indefinidos, conjuntos incoerentes que se prolongaram no vácuo negro que os enchia.

O horror consubstanciou-se, e o aborrecimento entediado de todos deu lugar ao choque e ao pavor. Instalou-se um mal-estar de alma tão grande que foi capaz de alterar a maciez física dos corpos dolentes. Os bruxos fizeram bem o seu trabalho, contudo talvez tudo tivesse acontecido da mesma maneira sem necessidade dos seus perfumes. O universo cresceu, luminoso, quente, sombrio e gélido, veloz e infinito, tentou inundar a existência humana que já se tinha deixado entediar por todos os poros e acordara pálida sem saber o que pensar ou o que mais querer. Sabia, contudo, que não era bem isto que queria, conhecia o suficiente para o saber, mas o tédio profundo tinha-a soterrado sob uma muralha de vacuidade.

A angústia afaga quem sempre a desejou, e por isso se deixou enfeitiçar. O que agora parece ilógico é fruto dessa vontade entediante que aceitou a razão doente. As almas estavam enfermas e não procuraram a cura, antes tentaram escamotear a realidade que tão bem conheciam. Se os venenos enfeitiçados foram bebidos com satisfação, porque tanta falsa incredibilidade? O vencedor infiltrou-se e talhou a vitória com argumentos abjetos. O caminho estava facilitado pelo trabalho perfeccionista dos feiticeiros, e o que parecia ridículo, boçal, desajustado, extremista, hedonista e incompreensível, foram só carícias gloriosas que os entediados vestiram com conforto e descontração. A brisa da mudança chegou, com estrondo. O episódio ilógico explodiu no momento propício, mas o peso astronómico de tanto poder queimará o rosto e a alma do profeta que tudo dará a perder, esplendidamente.

O tédio absoluto e insuportável contempla-se com o olhar que merece, é apenas uma imensa rua deserta com gente nela, tão difícil de compreender. Este final improvável bem depressa se transformará em mau princípio, essa é a minha certeza, a coisa nítida que vislumbro com a clareza de um relâmpago. A história esquece-se com tremenda rapidez, o que dela se devia lembrar não conforta nem interessa aos entediados desta terra, sempre alheios e ausentes a ver passar a vida que já passou e que os não via.

O acidente aconteceu com a importância que tem uma vida no universo, e nada de humano há no infinito, apenas o peso do tédio e a revolta sufocante dos que julgam existir já estando mortos.

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