Estou deitado e respiro
com dificuldade à beira da realidade. Os ruídos de tudo o que é humano
regressam enquanto protesto agachado contra o frio que agasalhou o novo dia. O
meu cinzentismo está igual ao tempo de hoje, as palavras seguem os vestígios da
voz do grande Mago. Uma menina criança de tranças sorri enquanto observa os
gestos apressados do pai que fala com a mãe. Não a observam, perdidos na eterna
pressa matinal, afogados à beira da realidade que os cinge e abandona, baços no
seu exterior indefinido.
Estala o soalho do
corredor risível onde avançamos, e surge a imagem de nossos corpos por entre
cinzas, sinto-me mais feliz assim, nu no meio da poeira ainda quente, dispo-te
com os olhos enquanto pensas o que te direi, sabes tão bem o que te direi.
Unimo-nos e abrimos as portas do universo irreal onde nos conhecemos e amamos,
onde misturamos as partes perdidas e achadas de quem ainda somos. Estamos
diferentes, os nossos corpos ligados sentem a estranheza do reencontro, o chão
esbate-se e esquece-se de nós, aperto-te contra o peito para melhor te sentir e
me transformar, afagamos nas memórias esta primeira vez como se fosse a última,
esta primeira vez mentirosa onde nos sentimos felizes, só aqui nos sentimos
felizes nesta mentira fresca e delicada que nos humedece a pele e os sentidos.
Ó noite mentirosa do meu perfeito dia, torna-nos treva também.
Na escuridão os sóis
florescem incógnitos e menos importantes, o fio invisível que os une regulariza
os reflexos pálidos de suas cores diversas.
Beijo novamente os
pedaços encantados de ti sem nunca lhes poder tocar. Sou um prisioneiro
silencioso a pairar entre universos abstratos desconhecidos. É nessa treva
inóspita que escrevo e me ilumino, é aí que desperto e sonho, que existo e,
naturalmente, me enlouqueço. Não estou agora mesmo aqui sentado a meditar, tudo
isto é somente verossemelhança mascarada de momento irrepetível, tudo isto é
nada, fui trocado à nascença neste mundo e acabei náufrago da minha imaginação.
O inverno aproxima-se.
A terra prodigiosa onde nos amamos também tem estações que falam connosco e nos
entretêm. As paisagens são o coração, a iguaria desenhada pelos deuses deste
lugar. Aqui vou poder amar-te para sempre, nesta página onde não me conheço se
não te conhecer, onde suspeito que somos feitos da mesma carne e do mesmo
sangue, onde somente amantes existiremos. Quem, antes de nós, se terá conhecido
ou amado assim?
Estamos quase sempre
afastados.
Seguimos caminhos
diferentes.
A cegueira que me foi
diagnosticada é quase tão antiga como a data em que nasci. Para testemunhar
esta evidência, bastam as palavras acabadas de escrever. O ator que sou
representou durante grande parte da manhã, inventou-se escritor e encheu o
tempo a acrescentar um inútil pasmo metafísico ao palco etéreo por onde vagueia
o pensamento.
A vida do condenado vai
passando, ele é o prisioneiro náufrago, o mendigo, é o ator menor que erra em
todas as frases que constrói. Olha-se como uma extensão de si próprio e
acredita que essa é a sua parte verdadeira. Pesa-lhe mais a vida acordada que a
sonhada, descaminhar passou a ser o nome da filosofia que abraçou.
Ao revisitar as
palavras do Mago acordei a tempo de me libertar desta noção trágica de
individualidade que construi ao viajar sonolento por tudo o que sinto e vejo.
Gosto de passear pelas palavras do Fernando, nome comum aos dois, e acredito
que sou capaz de o conhecer melhor do que ontem conhecia, e do que ontem me
conhecia.
Vemos e sentimos a
verdade num repente, em momentos de inteira felicidade solitária, pois nada há
de mais solitário do que o ato literário de criação, a mais imperfeita e pura
forma de liberdade.
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