sábado, 26 de novembro de 2016

36 - LIBERDADE



Estou deitado e respiro com dificuldade à beira da realidade. Os ruídos de tudo o que é humano regressam enquanto protesto agachado contra o frio que agasalhou o novo dia. O meu cinzentismo está igual ao tempo de hoje, as palavras seguem os vestígios da voz do grande Mago. Uma menina criança de tranças sorri enquanto observa os gestos apressados do pai que fala com a mãe. Não a observam, perdidos na eterna pressa matinal, afogados à beira da realidade que os cinge e abandona, baços no seu exterior indefinido.
Estala o soalho do corredor risível onde avançamos, e surge a imagem de nossos corpos por entre cinzas, sinto-me mais feliz assim, nu no meio da poeira ainda quente, dispo-te com os olhos enquanto pensas o que te direi, sabes tão bem o que te direi. Unimo-nos e abrimos as portas do universo irreal onde nos conhecemos e amamos, onde misturamos as partes perdidas e achadas de quem ainda somos. Estamos diferentes, os nossos corpos ligados sentem a estranheza do reencontro, o chão esbate-se e esquece-se de nós, aperto-te contra o peito para melhor te sentir e me transformar, afagamos nas memórias esta primeira vez como se fosse a última, esta primeira vez mentirosa onde nos sentimos felizes, só aqui nos sentimos felizes nesta mentira fresca e delicada que nos humedece a pele e os sentidos. Ó noite mentirosa do meu perfeito dia, torna-nos treva também.
Na escuridão os sóis florescem incógnitos e menos importantes, o fio invisível que os une regulariza os reflexos pálidos de suas cores diversas.
Beijo novamente os pedaços encantados de ti sem nunca lhes poder tocar. Sou um prisioneiro silencioso a pairar entre universos abstratos desconhecidos. É nessa treva inóspita que escrevo e me ilumino, é aí que desperto e sonho, que existo e, naturalmente, me enlouqueço. Não estou agora mesmo aqui sentado a meditar, tudo isto é somente verossemelhança mascarada de momento irrepetível, tudo isto é nada, fui trocado à nascença neste mundo e acabei náufrago da minha imaginação.
O inverno aproxima-se. A terra prodigiosa onde nos amamos também tem estações que falam connosco e nos entretêm. As paisagens são o coração, a iguaria desenhada pelos deuses deste lugar. Aqui vou poder amar-te para sempre, nesta página onde não me conheço se não te conhecer, onde suspeito que somos feitos da mesma carne e do mesmo sangue, onde somente amantes existiremos. Quem, antes de nós, se terá conhecido ou amado assim?
Estamos quase sempre afastados.
Seguimos caminhos diferentes.
A cegueira que me foi diagnosticada é quase tão antiga como a data em que nasci. Para testemunhar esta evidência, bastam as palavras acabadas de escrever. O ator que sou representou durante grande parte da manhã, inventou-se escritor e encheu o tempo a acrescentar um inútil pasmo metafísico ao palco etéreo por onde vagueia o pensamento.
A vida do condenado vai passando, ele é o prisioneiro náufrago, o mendigo, é o ator menor que erra em todas as frases que constrói. Olha-se como uma extensão de si próprio e acredita que essa é a sua parte verdadeira. Pesa-lhe mais a vida acordada que a sonhada, descaminhar passou a ser o nome da filosofia que abraçou.
Ao revisitar as palavras do Mago acordei a tempo de me libertar desta noção trágica de individualidade que construi ao viajar sonolento por tudo o que sinto e vejo. Gosto de passear pelas palavras do Fernando, nome comum aos dois, e acredito que sou capaz de o conhecer melhor do que ontem conhecia, e do que ontem me conhecia.
Vemos e sentimos a verdade num repente, em momentos de inteira felicidade solitária, pois nada há de mais solitário do que o ato literário de criação, a mais imperfeita e pura forma de liberdade.

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