sexta-feira, 4 de novembro de 2016

31 - PRISÃO



A inutilidade dos elementos desolados do espírito incomoda os músculos que deixaram de lhes obedecer. Doem-me as pernas e os braços e as costas e o corpo inteiro, a violência subsiste e devasta o espírito inquieto em mais uma noite de sobressalto. Durmo consciente, mas nunca profundamente, pratico passeios impossíveis entre vilas inexistentes e as dores aumentam de intensidade, tornam-se agudas e pungentes e o incómodo cresce e tudo em mim adquire dimensões impacientes.
Que vila era aquela que visitei em mais um sono atribulado? Os homens e mulheres que nele conheci cheiravam e respiravam como os que vivem do lado correto do palco onde vagueio. Escutei-lhes as frases e as explicações que me indicaram os caminhos a percorrer, apesar de ter deambulado por ruas e praças e avenidas erradas, apesar de ter dado uma volta inteira ao perímetro urbano do lugar.
O sonho acontecia, e eu sabia que estava preso aos dolorosos gestos milimétricos que ali ensaiava, fixo em detalhes tão reais que lhes senti o cheiro e paladar. Regressei à mesma rua onde cheguei, escutei os sons e observei os sinais com maior atenção. Desta vez não me perdi, pois sabia que ainda me faltavam percorrer alguns quilómetros a pé por estradas secundárias de curvas apertadas até poder acordar.
Acordei, e mais uma vez o fiz cedo demais, ainda escutava as narrativas fotográficas do que acabara de experienciar tão intensamente. Inclinei-me para o lado da cama por onde sempre me levanto, levitei sem vontade de acordar, levitei sonâmbulo para essa noção de manhã que já terminou, agora é noite cerrada e o sono regressa e eu vislumbro as imagens siamesas desse filme imaginário que aqui relembro.
O mundo inteiro avança distraído, imaginação morta de coisas ridículas e absurdas, escurecido por uma loucura vergonhosa que os novos tempos pariram. Envelheceu desfigurado, uma sombra inacabada dele próprio. O condenado está mais vazio, mais oco, a linguagem incompreensível dos humanos destruiu-lhe parcialmente os movimentos e ele sente-se perdido, é um caos de causas perdidas.
O Mago dizia que o mundo se tinha perdido na sua era, e nada lhe dizia. Restava-lhe a mágoa intensa e invisível acompanhada pelo som da tristeza a pairar como quem chora num quarto vazio.
Tudo é morte e inexpressividade.
Ninguém reconhece quem encontra, os enredos trágicos perpetuam-se nessa coexistência anormal com o novo mundo transfigurado.
Este presente não é recente, é antigo, é o efeito borboleta a ocupar várias posições no espaço visível, é a teoria do caos, é o erro, nunca a solução.
No meu sonho senti-me inútil e mais verídico, as sensações mínimas aumentaram de intensidade e eu acreditei que fui apenas mera ausência de mim. Vivi desperto e independente, a totalidade das células e dos átomos que me compõe dilataram-se ao ponto da inutilidade plena, tornaram-me um acaso simbólico, uma incerteza incorpórea.
Somos mistério infinito, ficção translúcida da maior complexidade. Somos toda esta gente que nele habita, a sociedade violenta que combate batalhas continuadas e se move, sedenta e cega, sem um pingo de humildade e sensatez. Abençoados instantes em que mergulho nestes sonos assombrosos em que sofro e gozo com coisa nenhuma. Agrada-me sentir e nunca esquecer o que sinto, agrada-me muito mais do que ter de descer até aos chinelos que me aquecem os pés e amparam a descida à vida que hoje me aconteceu e já esqueci…
Sou dado a estes tédios meditativos que não apetecem a mais nenhuma vida.
Hoje embriaguei-me para conseguir captar a essência vadia dos meus pensamentos entorpecidos, estas coisas pouco nobres em que apareço inerte e esquecido, em que o sopro repentino das palavras passa a nuvens externas do que ainda não conheci.
Hoje embriaguei-me, bebi uma garrafa inteira de incógnitas, pensamentos e grandes desilusões…

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