A inutilidade dos
elementos desolados do espírito incomoda os músculos que deixaram de lhes
obedecer. Doem-me as pernas e os braços e as costas e o corpo inteiro, a
violência subsiste e devasta o espírito inquieto em mais uma noite de
sobressalto. Durmo consciente, mas nunca profundamente, pratico passeios
impossíveis entre vilas inexistentes e as dores aumentam de intensidade,
tornam-se agudas e pungentes e o incómodo cresce e tudo em mim adquire
dimensões impacientes.
Que vila era aquela que
visitei em mais um sono atribulado? Os homens e mulheres que nele conheci
cheiravam e respiravam como os que vivem do lado correto do palco onde vagueio.
Escutei-lhes as frases e as explicações que me indicaram os caminhos a
percorrer, apesar de ter deambulado por ruas e praças e avenidas erradas,
apesar de ter dado uma volta inteira ao perímetro urbano do lugar.
O sonho acontecia, e eu
sabia que estava preso aos dolorosos gestos milimétricos que ali ensaiava, fixo
em detalhes tão reais que lhes senti o cheiro e paladar. Regressei à mesma rua
onde cheguei, escutei os sons e observei os sinais com maior atenção. Desta vez
não me perdi, pois sabia que ainda me faltavam percorrer alguns quilómetros a
pé por estradas secundárias de curvas apertadas até poder acordar.
Acordei, e mais uma vez
o fiz cedo demais, ainda escutava as narrativas fotográficas do que acabara de
experienciar tão intensamente. Inclinei-me para o lado da cama por onde sempre me
levanto, levitei sem vontade de acordar, levitei sonâmbulo para essa noção de
manhã que já terminou, agora é noite cerrada e o sono regressa e eu vislumbro
as imagens siamesas desse filme imaginário que aqui relembro.
O mundo inteiro avança
distraído, imaginação morta de coisas ridículas e absurdas, escurecido por uma
loucura vergonhosa que os novos tempos pariram. Envelheceu desfigurado, uma
sombra inacabada dele próprio. O condenado está mais vazio, mais oco, a
linguagem incompreensível dos humanos destruiu-lhe parcialmente os movimentos e
ele sente-se perdido, é um caos de causas perdidas.
O Mago dizia que o
mundo se tinha perdido na sua era, e nada lhe dizia. Restava-lhe a mágoa
intensa e invisível acompanhada pelo som da tristeza a pairar como quem chora
num quarto vazio.
Tudo é morte e
inexpressividade.
Ninguém reconhece quem
encontra, os enredos trágicos perpetuam-se nessa coexistência anormal com o
novo mundo transfigurado.
Este presente não é
recente, é antigo, é o efeito borboleta a ocupar várias posições no espaço
visível, é a teoria do caos, é o erro, nunca a solução.
No meu sonho senti-me
inútil e mais verídico, as sensações mínimas aumentaram de intensidade e eu
acreditei que fui apenas mera ausência de mim. Vivi desperto e independente, a
totalidade das células e dos átomos que me compõe dilataram-se ao ponto da
inutilidade plena, tornaram-me um acaso simbólico, uma incerteza incorpórea.
Somos mistério
infinito, ficção translúcida da maior complexidade. Somos toda esta gente que
nele habita, a sociedade violenta que combate batalhas continuadas e se move,
sedenta e cega, sem um pingo de humildade e sensatez. Abençoados instantes em
que mergulho nestes sonos assombrosos em que sofro e gozo com coisa nenhuma.
Agrada-me sentir e nunca esquecer o que sinto, agrada-me muito mais do que ter
de descer até aos chinelos que me aquecem os pés e amparam a descida à vida que
hoje me aconteceu e já esqueci…
Sou dado a estes tédios
meditativos que não apetecem a mais nenhuma vida.
Hoje embriaguei-me para
conseguir captar a essência vadia dos meus pensamentos entorpecidos, estas
coisas pouco nobres em que apareço inerte e esquecido, em que o sopro repentino
das palavras passa a nuvens externas do que ainda não conheci.
Hoje embriaguei-me,
bebi uma garrafa inteira de incógnitas, pensamentos e grandes desilusões…
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