Descrevo o farrapo que
sou, coisa nenhuma, alto, um erro a flutuar sacudido por ventos de leste que me
sacodem. Assobia o vento na noite que, de repente, cai sobre a cidade onde
vivo. Cai a noite e eu desço por um alçapão escuro que me fecha, sozinho, numa
cave agitada onde aproveito para dormir. Estou cansado, mais uma vez, depois de
mais um dia onde apenas as palavras me salvaram. A ordem das coisas foi
despedaçada, as árvores arderam, os jardins desapareceram, a tristeza subsiste
e o trânsito é um esgoto a céu aberto que não espera para apodrecer. Os
tumultos invadiram a cidade, passaram por aqui hoje e toda a manhã, desde a
tarde até agora. Foram anunciados há pouco, nas notícias das dez, repetidos
agora, que já são onze, iguais aos da tarde, quando eram fresca novidade, o
lado irreal do acontecimento visto através de uma perspetiva diferente da
anterior, no canal da concorrência, menos dado a noticiar o sangue e as
vísceras e o mau hálito, tal como eles são, por poderem distrair os espetadores
mais atentos ao absurdo da nulidade. Amo a hipocrisia dessa verdura amarga das
notícias de todos os dias, tudo é aparentemente inútil, como ontem, como
anteontem. Escutei esses acontecimentos anestesiado, à espera de uma saudade
súbita que me recordasse de ti, de como cheiravas da primeira vez que te vi,
perfeita, tão perfeita como ainda hoje te vejo e encontro e fico sem vontade de
me despedir, até nos encontrarmos de novo outra terça-feira qualquer. É nelas
que sou qualquer coisa de parecido ao que acredito ser, e fico em pânico,
desperto, vagueio, entro pela mais estreita rua que conheço e em breve me
descobres como sou. “Viver é ser outro”, assim pensava o Mago, e se ele
conhecia as vidas perdidas de quem sabia escutar, para depois se transformar
num outro em cada nova madrugada. Ninguém é quem julga ser neste momento, esta
cor já não nos pertence, e estes nossos olhos deixaram de olhar o mundo da
mesma maneira que ontem nos acontecia. A saudade não será bem-vinda por aqui!
Quero ser dono de ti,
deixar-me levar pela tua vontade, sem exagero nenhum, apenas a tua vontade de
me aquecer com a única chama que importa. Esse é todo o calor que desejo, e que
nunca desliguei desde essa primeira vez que o imaginei. A pele estremeceu de
prazer, cumpriu o seu dever e disse-me que a verdade não tem sabor. Exagerou,
mas nessa história o exagero não existe, cresce espaçado e ainda mal escureceu.
O calor é a composição melódica da razão, existe para nos atormentar, e a
atmosfera que respiramos aperta-se entre a distância que nos separa. O tempo
deixa de correr, quem nos dera que o tempo deixasse de correr e fosse atraído
por um qualquer buraco negro que o devorasse para todo o sempre e alterasse a
física quântica que é a razão das coisas neste universo supostamente conhecido.
O centro gravítico do cosmos engolido pela força titânica da gravidade
impossível! E tudo ficaria suspenso num imenso nada intervalado pelo canto das
cigarras, e pelo ruído da chuva a destacar-se dos demais. A inquietude das
névoas e dos fumos subiria desde o centro do universo e desceria dos céus
perfurados da infinita cúpula celeste até o nada indefinido se esboroar. No
final desse dia, a neblina que nos protege dissolver-se-á, tal como a razão que
nos rege. O contorno de nossos corpos passaria a ser um só, recortado pela
mesma luz esbatida que em sombras nos projetaria, verdadeiros. Finalmente.