sexta-feira, 15 de julho de 2016

09 - SONHO



Nas horas vazias em que existe algo mais do que coisa nenhuma, o meu nada sobressai do centro deste sonho inexistente, sensação imaterial e externa de mim que não posso alterar nem substituir, mas que se confessa nessa outra parte de quem sou. Admito a minha incapacidade de compreensão de tão complexas questões. Este ser que sou, a preto e branco, é substituído por uma cópia noturna colorida. Os sonhos possuem cores, destacam-se da realidade cinzenta e da monotonia pálida dos dias. É nos sonhos que a paz sobrevive, que nada é inútil, o sossego não é apedrejado com violência, os espíritos conseguem argumentar diferentes filosofias e raramente sentem vergonha em reconhecer. Tudo é ilusão inconsciente, um entendimento suave abre novas portas e os reflexos que delas nos chegam são histórias inéditas às quais sempre pertencemos. As que caem no esquecimento ainda estão a ocorrer debaixo de um luar dourado, são desertos de um tempo distante aqui tão perto. Não se pode comprar o sonho, nem o tempo breve e vago em que acontece, com as medidas estipuladas pelos que o praticam. Um sonho não é comparável a coisa alguma, apesar das lembranças de eventos já acontecidos neles se espelharem com insana regularidade.

O sol hoje nasceu com a mesma rapidez, abriu a paisagem e até agora passeou a sua nobreza pelo azul límpido do céu. Vagueamos, como nómadas cansados, ao som inaudível do astro emocionante. Vemos como quem não pensa, e avançamos, absurdos e inúteis, pela bruma que antecedeu o nascimento da estrela que nos aquece, sem pensamentos ou emoções. A fadiga endémica tomou conta dos corpos dos penitentes a quem tanta falta faz sonhar.

Pensar é mais pesado que a própria abstração de inventar palavras pesadas para pensar. Sentir que escutamos esses sons chegados de longe, onde o ar somente ajuda a encontrar receios para não mais regressar. Pressa, não deve existir, de todo, quebra a concentração necessária para a decifração das mensagens que nos chegam nas horas vazias povoadas de descansos. Pressa, não deve existir, a sua voracidade derrota a compreensão dos sonhos onde podemos caminhar, atrasa a perceção simbólica dos sinais e passamos ocos pelo intervalo de coisa nenhuma. Crescemos, absurdos e ocos, apressados, sem sentir as linhas dessa fronteira que enclausura a realidade atrás de portas feitas de espelhos cristalinos. O apocalipse não vive do lado de lá, antes escorre deste lado da vida absurda para onde acordamos sempre que a luz do dia se espreguiça e nos cega, carregando-nos para o lugar das névoas absolutas.

Parte de mim cegou. Cedi à insignificância de ser mais real que ficção, cedi, sou agora bem menos misterioso do que a alma que ainda me alimenta a esperança em conseguir interpretar esse algures onde também pertenço.

Durmo, regresso para lá dessas portas envidraçadas à espera de subir de novo a casa, ilusão maior, que não só minha.

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