segunda-feira, 25 de julho de 2016

10 - QUE SAUDADE É ESTA QUE NOS MATA



Descrevo o farrapo que sou, coisa nenhuma, alto, um erro a flutuar sacudido por ventos de leste que me sacodem. Assobia o vento na noite que, de repente, cai sobre a cidade onde vivo. Cai a noite e eu desço por um alçapão escuro que me fecha, sozinho, numa cave agitada onde aproveito para dormir. Estou cansado, mais uma vez, depois de mais um dia onde apenas as palavras me salvaram. A ordem das coisas foi despedaçada, as árvores arderam, os jardins desapareceram, a tristeza subsiste e o trânsito é um esgoto a céu aberto que não espera para apodrecer. Os tumultos invadiram a cidade, passaram por aqui hoje e toda a manhã, desde a tarde até agora. Foram anunciados há pouco, nas notícias das dez, repetidos agora, que já são onze, iguais aos da tarde, quando eram fresca novidade, o lado irreal do acontecimento visto através de uma perspetiva diferente da anterior, no canal da concorrência, menos dado a noticiar o sangue e as vísceras e o mau hálito, tal como eles são, por poderem distrair os espetadores mais atentos ao absurdo da nulidade. Amo a hipocrisia dessa verdura amarga das notícias de todos os dias, tudo é aparentemente inútil, como ontem, como anteontem. Escutei esses acontecimentos anestesiado, à espera de uma saudade súbita que me recordasse de ti, de como cheiravas da primeira vez que te vi, perfeita, tão perfeita como ainda hoje te vejo e encontro e fico sem vontade de me despedir, até nos encontrarmos de novo outra terça-feira qualquer. É nelas que sou qualquer coisa de parecido ao que acredito ser, e fico em pânico, desperto, vagueio, entro pela mais estreita rua que conheço e em breve me descobres como sou. “Viver é ser outro”, assim pensava o Mago, e se ele conhecia as vidas perdidas de quem sabia escutar, para depois se transformar num outro em cada nova madrugada. Ninguém é quem julga ser neste momento, esta cor já não nos pertence, e estes nossos olhos deixaram de olhar o mundo da mesma maneira que ontem nos acontecia. A saudade não será bem-vinda por aqui!
Quero ser dono de ti, deixar-me levar pela tua vontade, sem exagero nenhum, apenas a tua vontade de me aquecer com a única chama que importa. Esse é todo o calor que desejo, e que nunca desliguei desde essa primeira vez que o imaginei. A pele estremeceu de prazer, cumpriu o seu dever e disse-me que a verdade não tem sabor. Exagerou, mas nessa história o exagero não existe, cresce espaçado e ainda mal escureceu. O calor é a composição melódica da razão, existe para nos atormentar, e a atmosfera que respiramos aperta-se entre a distância que nos separa. O tempo deixa de correr, quem nos dera que o tempo deixasse de correr e fosse atraído por um qualquer buraco negro que o devorasse para todo o sempre e alterasse a física quântica que é a razão das coisas neste universo supostamente conhecido. O centro gravítico do cosmos engolido pela força titânica da gravidade impossível! E tudo ficaria suspenso num imenso nada intervalado pelo canto das cigarras, e pelo ruído da chuva a destacar-se dos demais. A inquietude das névoas e dos fumos subiria desde o centro do universo e desceria dos céus perfurados da infinita cúpula celeste até o nada indefinido se esboroar. No final desse dia, a neblina que nos protege dissolver-se-á, tal como a razão que nos rege. O contorno de nossos corpos passaria a ser um só, recortado pela mesma luz esbatida que em sombras nos projetaria, verdadeiros. Finalmente.

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