Este eu que aqui
acontece nada é de mim, é uma falsidade criada por um conceito estético que se
sucede, não contínuo, sobressaltado, em dias intervalados. Tal como o Mago, não
sei quem verdadeiramente sou por detrás desta irrealidade, sei que devo ser
alguém, mas ao contrário dele, não pretendo vir a ser uma obra de arte, da alma
pelo menos, conforme escreveu um dia. Não possuo a sua coragem, a sua filosofia
nem a sua fulgurante estética literária, arte pura esculpida em calma e
alheamento, flor absurda florescida em afastada beleza. Tudo no Mago era
nítido, inevitável, de uma lógica soberba, tal como desejou…
Em comum sinto essa
saudade do outro que eu poderia ter sido e que por vezes também me dispersa e
sobressalta. Aconteceu mais tarde essa notícia, e quando me contaram olhei-me
ao espelho com receio de já não me reconhecer. Perante a emoção eu nada
declarei, a coragem abandonou-me num abandono de fim de dia. Tinha assistido à
inevitável aproximação da encruzilhada. Sem coragem para embarcar, soçobrei de
imediato à bifurcação do meu ser, pois não me podia rasgar ao meio em mil
pedaços amargos e doces. Essa verdade fez-me espetador desiludido e
esperançado. Perdi a guerra com o destino por ter vencido uma batalha ao
destino, por ter sido bem mais cobarde que corajoso, e o espetador da vida do
outro em que me tornei é a ironia de quem crescemos na vida assistindo à
desilusão de sermos quem nos criámos e não a estratégica sombra verdadeira do
milagre doce que a nossa falta de coragem desmontou.
Vazio… em pontuações
distribuídas nesta paisagem branca de palavras intranquilas, arruamento antigo,
vazio como a esperança, vazio insatisfeito de sons a recomeçar, estranhos à minha
condição humana da qual gostaria de despertar. Vácuo amargo onde me exilei para
escrever as frases onde me antevejo e procuro a coragem perdida em mim. O ser
feliz tem de possuir palavras contentes, o jogo está precisamente em construir
a figura que sou neste livro onde o Mago me ajuda a crescer, pensar em palavras
desfeitas lendo a sua vida que se construiu inteira à custa das suas palavras
desfeitas. Pensar é um desafio complicado, talvez inútil se nele não nos
encontrarmos e se nada fizer sentido. Coragem é reconhecer os falhanços em
imagens sucessivas e abrir a alma com esta tinta que dá vida às palavras e as
faz nascer. Escrever é a reação necessária à ficção em que hoje vivi, essa
moradia gigantesca por terminar, sem janelas de vidro nem telhados, sem
pinturas definidas, apenas a cor cinzenta do betão abandonado na paisagem, a
loucura da imensa piscina vazia que se estendia do interior para o exterior, a
escadaria espiralada que dava acesso aos andares superiores de onde se
vislumbravam as montanhas brancas e um enorme espaço vazio aberto entre dois
grandiosos terraços abandonados.
Falhei.
Não previ um falhanço
tão amargo, a minha coragem apenas me permite avançar acordado sem gozar por
inteiro as sortes merecidas.
Esculpi-me numa
cegueira esbatida com nuances de vida desejada nesse solar sonhado, sempre o
mesmo solar sonhado, mesmo quando o descrevo de maneiras diferentes, ora
recém-construído, ora em ruínas, ora nunca edificado. Estes elementos
permitem-me ir construindo a sua imagem, que ainda é um mistério confuso. Sei
que existe junto a um lago, meio escondido entre as altas árvores que o
circundam e onde o imagino sem imaginar. É ele que me segreda as paredes de que
se constrói, e as entradas e saídas e recantos e salas e quartos e salões e escadarias
e corrimões e amplos corredores abobadados, é ele quem me segreda emoções nunca
antes imaginadas e se revela, noturno, num recanto perdido da minha imaginação.
É lá que sinto melhor o
tempo, exagerado, passado e futuro, sentado no meu cadeirão de verga a olhar o
lago no imenso balcão do piso superior, com as pernas aconchegadas por uma
manta quente de merino. Leio o livro onde um qualquer deus me criou a criança
que nunca mais serei. Observo-me a mim próprio desterrado de emoções, e choro
esse mendigo abandonado em que me transformei. Sem amor, sem filhos, sem
amante, sem alma, sem paixão ou arte nenhuma, aquilo que tive, aquilo que nunca
tive, e a alma inteira abre-se numa convulsão tremenda e luminosa, mais uma
vez, e bate-me com um brinquedo de madeira, na cabeça, com violência, no meio
do recreio onde os risos de algumas vidas não adultas se divertem com a
situação. Estava distraído e agora dói-me a cabeça. Deixei-me apanhar pelas
palavras vadias mais uma vez, risquei estas ideias e agora acredito que as
vivi, ficaram entaladas na minha memória. Foi uma confusão voltar a relembrar
essa dor imensa e fina que aqui rabisquei. Quando escrevo é isto que acontece,
ganho alguma coragem e revisito as salas figuradas de outrora, detenho o olhar
e a atenção pelos quadros aí expostos, recordações de outras eras e romances.
É quase uma doença esta
coisa de escrever, fico perdido mesmo antes de acontecer, e só depois acordo,
já quase meio-dia, com a saudade a arrefecer-me o sangue e a esfriar-me a pele
e os ossos.
Coragem.
Mais tarde regressarei
ao meu castelo antigo, o meu solar isolado onde viajo no tempo, onde escrevo e
leio e sou o mais corajoso dos cobardes escritores.