domingo, 20 de novembro de 2016

35 - SONHAR, ACORDAR, SONHAR, ACORDAR...



Dias e dias passados sem nada dizer, sem nada para te dizer, nem ao menos um poema, escrever um verso apenas, escrever um algarismo perante a nulidade eterna da ausência sentida… uma paragem rítmica doseada de renúncia e preguiça. A monotonia viral comprometeu os meus gestos e pensamentos, e a vida a passar em constante correria.
O réptil que fui regressou, esta noite, para me atormentar. O disfarce rastejante em que me converti avançou veloz por entre a vegetação em direção à memória vazia do meu sonho, num ziguezaguear oscilante. A arte da escrita conseguiu torturar-me com facilidade, sofri no escuro e diante do sol por avançar encoberto, com o peso constante do sono a perder de vista. Sou feliz quando me isolo, e cresço tristonho nesse pesadelo em que me apago ao tentar descobrir-me.
A incoerência ganhou uma dimensão avassaladora, as quatro paredes onde vivia resolveram avançar e o espaço diminuiu até só restar um pequeno nicho onde me espalmei para evitar o esmagamento. Eis a cela que demarcava a distância inexistente entre corpo e tabique. A superfície irregular era suja e fria, tinha o cheiro da morte e o sabor da solidão.
Ainda não morri!
O réptil indicou o caminho a seguir do alto do meu sonho, iluminou a minha fuga e eu tentei escapar, mas estava preso a essas paredes que me comprimiam. Agradou-me aquela quietude e o silêncio.
Virei-me para o teto destruído da minha habitação e vislumbrei a mais estranha das nuvens, uma coisa disforme desalinhada com a imensa quantidade de telhas partidas que acabavam de cair a meus pés. A beleza trágica da destruição era a nova paisagem que me pertencia.
Estava errado na sombra da casa onde rastejava, deixei-me distrair e o réptil em que me transformei escovou o novo corpo escamado que nasceu, como um jardim colorido, por debaixo do casaco antigo que durante anos o protegeu.
Amo o recanto citadino onde me sento a alinhavar estes ideais incongruentes.
A sombra da cobra em que me transformei floresceu nesse canteiro inexistente e eu, distraído como sou, deixei-me emparedar nas suas quatro paredes sem me ter apercebido. A ilusão durou o tempo inteiro da última madrugada. A tragicomédia fez-me esquecer tudo o que era normal antes de se dissolver na manhã deste dia já esquecido. Fui ator inconsciente e sobressaltado, perdi-me sem desejar, e os perigos que acabara de descobrir esfarraparam a pessoa acontecida nesse universo paralelo dos sonhos.
Existi réptil não venenoso no intervalo da minha não realidade, aí cresci até ultrapassar a altura das fachadas dos prédios, olhei de novo as nuvens e senti febre sem saber se ali mesmo morreria entre as coisas que eram nada, sendo eu nada também. Antes de acordar morri, deixei de ser a cobra que o sono fez de mim.
As nuvens acordaram-me, pareceram-me maiores do que ontem. Nuvens maiores do que todas as casas da paisagem, altas e brancas e cinzentas, maiores do que a ponte e as montanhas, tomaram conta do céu e falaram umas com as outras. Possuíam o tamanho certo do meu novo dia para onde me arrastei, fatigado do meu sonho, um quase réptil de pijama e chinelos, um absurdo contrassenso de mim.
A linha do horizonte, os edifícios, as serras e a ponte e a estrada e o rio e eu acordado a interpretar os sinais deste dia novo, a fazer crescer o texto surreal na noite onde agora aconteço.
Escrevo a prosa indecifrável do meu amanhecer.
Escrevo antes do dia terminar.
Nele nos gastámos e perdemos, nele nos confundimos em universos incógnitos que só nós conseguimos decifrar.
A coisa real e a lenda são a terra nula onde vivemos e hoje, mais uma vez, senti-me este farrapo ausente, farto de tudo, desmanchado e inútil.
O tédio desceu em mim. Será a névoa condensada que me esconde e escurece a visão apocalíptica das manhãs onde acordo?
Continuo a ter medo da serpente em que me transformei.
O ruído que fazia ao arrastar-me pela terra húmida alonga-se, difuso, pela memória desfeita desse sonho acontecido. É noite outra vez, é outra vez quase tempo de sonhar, e a vontade de ver raiar a imensa claridade fictícia onde sobrevivo aumenta a cada minuto que passa.
Sonhar é a única atividade sem remédio onde me reconheço. Uso o que aí se passa para ser eu todo outra vez, como realmente sou, réptil, ave, presente, passado e futuro, dúvidas e certezas, verdades e mentiras, inconsciência plena a modorrar de satisfação. Sou toda a imaginação desprendida, sem lógica ou fundamentos que a sustentem, e fecho as pálpebras para mergulhar vivo nas cascatas desses lugares vagos onde me perderei.
Espreito de olhos abertos o que será o sono desta noite.
Sons alegres, ouço-os, e deixo de os escutar…
O lugar vago onde caminharei, onde existirá?
A cada noite que passa os acontecimentos erguem-se dessa obscuridade tranquilizadora que gosta de me receber.
Fecho as pálpebras antes de cair na cama, fecho-as antes de me deitar, agarro-me ao travesseiro e ao leito e aos lençóis sempre desfeitos, e deixo-me levar.
A cobra que sou encosta a cabeça de bicho gigante, e boceja.
Os dentes afiados são o que mais brilha na boca aberta, defendem o raiar do sonho novo, delicioso sonho novo onde repousarei o meu eterno cansaço.
Dormir… é respirar enquanto estamos mortos, e ter a liberdade e o privilégio de regressar à vida pela manhã, uma morte leve, como o Mago dizia, da qual despertamos com saudade e frescura, depois da cedência dos tecidos da alma à roupagem do esquecimento.

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