Dias e dias passados
sem nada dizer, sem nada para te dizer, nem ao menos um poema, escrever um
verso apenas, escrever um algarismo perante a nulidade eterna da ausência
sentida… uma paragem rítmica doseada de renúncia e preguiça. A monotonia viral
comprometeu os meus gestos e pensamentos, e a vida a passar em constante
correria.
O réptil que fui
regressou, esta noite, para me atormentar. O disfarce rastejante em que me
converti avançou veloz por entre a vegetação em direção à memória vazia do meu
sonho, num ziguezaguear oscilante. A arte da escrita conseguiu torturar-me com
facilidade, sofri no escuro e diante do sol por avançar encoberto, com o peso
constante do sono a perder de vista. Sou feliz quando me isolo, e cresço
tristonho nesse pesadelo em que me apago ao tentar descobrir-me.
A incoerência ganhou
uma dimensão avassaladora, as quatro paredes onde vivia resolveram avançar e o
espaço diminuiu até só restar um pequeno nicho onde me espalmei para evitar o
esmagamento. Eis a cela que demarcava a distância inexistente entre corpo e
tabique. A superfície irregular era suja e fria, tinha o cheiro da morte e o
sabor da solidão.
Ainda não morri!
O réptil indicou o
caminho a seguir do alto do meu sonho, iluminou a minha fuga e eu tentei
escapar, mas estava preso a essas paredes que me comprimiam. Agradou-me aquela
quietude e o silêncio.
Virei-me para o teto
destruído da minha habitação e vislumbrei a mais estranha das nuvens, uma coisa
disforme desalinhada com a imensa quantidade de telhas partidas que acabavam de
cair a meus pés. A beleza trágica da destruição era a nova paisagem que me pertencia.
Estava errado na sombra
da casa onde rastejava, deixei-me distrair e o réptil em que me transformei
escovou o novo corpo escamado que nasceu, como um jardim colorido, por debaixo
do casaco antigo que durante anos o protegeu.
Amo o recanto citadino
onde me sento a alinhavar estes ideais incongruentes.
A sombra da cobra em
que me transformei floresceu nesse canteiro inexistente e eu, distraído como
sou, deixei-me emparedar nas suas quatro paredes sem me ter apercebido. A
ilusão durou o tempo inteiro da última madrugada. A tragicomédia fez-me
esquecer tudo o que era normal antes de se dissolver na manhã deste dia já
esquecido. Fui ator inconsciente e sobressaltado, perdi-me sem desejar, e os
perigos que acabara de descobrir esfarraparam a pessoa acontecida nesse
universo paralelo dos sonhos.
Existi réptil não
venenoso no intervalo da minha não realidade, aí cresci até ultrapassar a
altura das fachadas dos prédios, olhei de novo as nuvens e senti febre sem
saber se ali mesmo morreria entre as coisas que eram nada, sendo eu nada
também. Antes de acordar morri, deixei de ser a cobra que o sono fez de mim.
As nuvens acordaram-me,
pareceram-me maiores do que ontem. Nuvens maiores do que todas as casas da
paisagem, altas e brancas e cinzentas, maiores do que a ponte e as montanhas,
tomaram conta do céu e falaram umas com as outras. Possuíam o tamanho certo do
meu novo dia para onde me arrastei, fatigado do meu sonho, um quase réptil de
pijama e chinelos, um absurdo contrassenso de mim.
A linha do horizonte,
os edifícios, as serras e a ponte e a estrada e o rio e eu acordado a
interpretar os sinais deste dia novo, a fazer crescer o texto surreal na noite
onde agora aconteço.
Escrevo a prosa
indecifrável do meu amanhecer.
Escrevo antes do dia
terminar.
Nele nos gastámos e
perdemos, nele nos confundimos em universos incógnitos que só nós conseguimos
decifrar.
A coisa real e a lenda
são a terra nula onde vivemos e hoje, mais uma vez, senti-me este farrapo
ausente, farto de tudo, desmanchado e inútil.
O tédio desceu em mim.
Será a névoa condensada que me esconde e escurece a visão apocalíptica das
manhãs onde acordo?
Continuo a ter medo da serpente
em que me transformei.
O ruído que fazia ao
arrastar-me pela terra húmida alonga-se, difuso, pela memória desfeita desse
sonho acontecido. É noite outra vez, é outra vez quase tempo de sonhar, e a
vontade de ver raiar a imensa claridade fictícia onde sobrevivo aumenta a cada
minuto que passa.
Sonhar é a única
atividade sem remédio onde me reconheço. Uso o que aí se passa para ser eu todo
outra vez, como realmente sou, réptil, ave, presente, passado e futuro, dúvidas
e certezas, verdades e mentiras, inconsciência plena a modorrar de satisfação.
Sou toda a imaginação desprendida, sem lógica ou fundamentos que a sustentem, e
fecho as pálpebras para mergulhar vivo nas cascatas desses lugares vagos onde
me perderei.
Espreito de olhos
abertos o que será o sono desta noite.
Sons alegres, ouço-os,
e deixo de os escutar…
O lugar vago onde
caminharei, onde existirá?
A cada noite que passa os
acontecimentos erguem-se dessa obscuridade tranquilizadora que gosta de me
receber.
Fecho as pálpebras
antes de cair na cama, fecho-as antes de me deitar, agarro-me ao travesseiro e
ao leito e aos lençóis sempre desfeitos, e deixo-me levar.
A cobra que sou encosta
a cabeça de bicho gigante, e boceja.
Os dentes afiados são o
que mais brilha na boca aberta, defendem o raiar do sonho novo, delicioso sonho
novo onde repousarei o meu eterno cansaço.
Dormir… é respirar
enquanto estamos mortos, e ter a liberdade e o privilégio de regressar à vida
pela manhã, uma morte leve, como o Mago dizia, da qual despertamos com saudade
e frescura, depois da cedência dos tecidos da alma à roupagem do esquecimento.
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