terça-feira, 31 de maio de 2016

11 - Lenço de seda



O historiador seguiu com a carga preciosa ao longo da velha estrada, sem qualquer companhia, durante vários dias. As letras aproveitaram a viagem para se irem conhecendo, para saberem qual a sua proveniência, o valor e a idade que tinham. Os significados e nomes que as distinguiam tinham sido arquivados pelo historiador, assim como o seu tamanho, a hierarquia e a semântica que as caracterizava, os perfis dos seus significados, e os sonhos que faziam acontecer.
Efémera manteve-se adormecida, vencida pelo cansaço da descida. O pequeno lenço de seda colorida que a aquecia tranquilizava-lhe o sono. Pragmática estava colada ao seu lado, encostada à amiga. Ajeitou-lhe o lenço de seda e aproveitou-o para também tapar as suas pernas logo abaixo do joelho. Nepente, palavra antiga, copiou-lhe os gestos e as três palavras assim se mantiveram aconchegadas o resto daquela madrugada.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

10 - Universos de imaginação


O processo de escrita, de grande talento, manifestada por autores de génio que agregaram as primeiras palavras, tornaram-nos para sempre admirados. Esses primeiros historiadores não se preocuparam somente com a descrição dos destinos dos seus povos. Com o passar do tempo, aprenderam a rendilhar as narrativas e a descrever o que não tinha acontecido, aprenderam a imaginar melhor, a praticar e a melhorar essas liberdades. Os mais ousados de todos criaram novas histórias sem qualquer semelhança com a realidade. De facto, nada daquilo que contaram tinha acontecido. Os lugares que descreveram, as informações detalhadas de acontecimentos, as relações autênticas e pormenorizadas entre personagens, os sentimentos e o constante jogo de emoções, permitiam aos historiadores iniciais orbitar em torno de universos de imaginação apenas com a utilização dessa fantástica criação que eram as palavras, átomos recém nascidos, entidades complexas e insubstituíveis para a construção das narrativas e dos dramas.
Os olhos dos outros passavam por ali, pela carroça do velho historiador recolector de palavras perdidas. O mais antigo autor da região não se limitava a descrever o que via, ele foi dos primeiros a arriscar e a compreender as vantagens de deixar de ser submisso à realidade que oferecia imagens mentirosas. Os seus olhos eram mapas sem regras, janelas que decidia abrir ou manter fechadas, jardins, oceanos, luz de mil faróis, eram todas as palavras que escolhia e encontrava, e todas as visualizações abstratas sugeridas pela alma imaginativa do idoso e sábio criador.
Foi ele quem descobriu Efémera e a guardou. Só ele sabia como a iria usar depois de a analisar e compreender. Se não tivesse abandonado o trilho poderia não a ter encontrado a tempo de a proteger da parte obscura do percurso, do frio da madrugada e de historiadores menos sensatos. Viu Efémera intacta e plena de cor, e logo imaginou as geometrias impossíveis que ela lhe permitiria ajudar a criar. A corporalidade e sonoridade ímpar da jovem palavra seriam imprescindíveis para tentar dar uma vida nova às suas visões de narrador imaginativo e paradoxal, e ela passou o resto do dia colada dentro da mente do historiador.

sábado, 28 de maio de 2016

09 - De onde nascem as palavras


Quem desejou viver para sempre? Quem criou a história, através do nascimento da palavra, desejou viver para sempre, e amar para sempre.
O Criador Inicial construiu a primeira fábrica, seguindo ordens superiores. Foi a mais rudimentar, a mais pequena e a mais emblemática de todas. A usina ficou eternizada pelas misteriosas luzes vermelhas, brancas e azuladas que saíam projetadas pelas paredes negras do edifício sempre que uma nova palavra era gerada. Saíam minúsculas, ímpares grãos microscópicos com energia capaz de eternizar. E cantavam. Sonatas ecoavam do interior da construção após cada nascimento, luzes coloridas bailavam numa alegria esfuziante quando recebiam os seres milagrosos, e o espetáculo grandioso parecia não ter fim.
Palavra após palavra, aos primeiros historiadores tinha sido dada, finalmente, a possibilidade de iluminar o futuro, de encontrar novas formas de perpetuar o presente com palavras tenras. Os sábios que edificaram a fábrica precisaram de aprender a escutá-la enquanto esta laborava no máximo da suas capacidades, para lhe aperfeiçoarem o funcionamento, e demoraram muitas gerações até o conseguirem. Por essa altura já milhares de outras fábricas tinham sido construídas, réplicas imperfeitas da primeira. Nunca conseguiram alcançar a glória desse feito incrível, e acabaram por definhar à sombra da construção inicial, que cresceu desmesuradamente até ao trágico dia da Grande Destruição.
As paredes cresceram em todas as direções, e a fábrica expandiu-se com soluções criadas para providenciar o necessário apoio ao nascimento de todo o tipo de palavras. Com o passar dos séculos, a dimensão do projeto começou a levantar problemas que ninguém antecipara. Laboratórios científicos começaram a testar as teses de peritos a pedido do Construtor Inicial, apesar de ele ter jurado nunca mais se intrometer nos destinos do empreendimento, mas a honestidade de alguns dos engenheiros-chefe foi posta em causa e alguma coisa tinha de ser feita. Tornara-se imprescindível descobrir os defeitos causados pela inadmissível incompetência das chefias antes que fosse tarde demais.
Queixas, umas atrás de outras, foram escutadas. Confissões foram proferidas, e um prazo de dois anos para a recuperação e renovação da fábrica acabou por ser a estimativa do tempo necessário para esse efeito.
Dois anos!
Dois anos de espera, e só então nasceria uma nova palavra depois de Efémera, que não fazia a mais pequena ideia da tarefa gigantesca que a aguardava.
Uma palavra mais velha descansava ao seu lado. As duas seguiram assim, aconchegadas e quentes, no interior da carruagem de madeira do famoso historiador, que não tinha grande pressa em chegar ao destino. O homem entretinha-se a beber aguardente velha por um pequeno cantil metálico que herdara do avô na adolescência, e o cheiro a álcool, que era impossível de disfarçar, entranhou-se por toda a parte.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

08 - O historiador



Um nobre historiador tinha como hábito utilizar uma estrada antiga para fazer o percurso entre duas das mais importantes povoações da província. O velho caminho raramente era utilizado por outros viajantes, mas ele preferia-o aos outros pois assim podia atravessar as cordilheiras e observar as paisagens que mais admirava. Uma longa reta dessa estrada passava perto do sopé da ravina por onde Efémera desceu. A temperatura tinha arrefecido bastante e o corpo da pequena palavra adormecida tremia com movimentos repetitivos. Essa agitação teve o condão de chamar a atenção do viajante que dela se acercou. Com todo o cuidado, pegou na jovem e colocou-a no interior da sua carroça de madeira, junto a muitas outras palavras adormecidas que ele também já tinha resgatado ao longo da jornada. Depositou-a num cobertor de lã perto da portada do veículo, no meio de mais de uma centena de palavras, e registou o seu nome em grossos cadernos forrados a cabedal, função primordial dos nobres historiadores daquele lugar. O homem também guardou a arma e a sacola dos mantimentos de Efémera, e depois tapou-a com o belíssimo lenço de seda que os irmãos rouxinóis lhe tinham oferecido.



07 - Que sonhos são estes?



Um mistério permanecia encerrado no coração de Efémera, e ela tinha de o desvendar.
Muitos acreditavam ser inútil tal preocupação fazer parte da vida de uma palavra tão jovem, consideravam, inclusive, ser impossível, em tão tenra idade, dar-se início à construção de um espírito capaz de resistir às marcas do tempo. As palavras novas foram criadas para crescer através da união com outras palavras, dessa riqueza se constroem memórias que, depois, devem ser preservadas com o respeito e amor que merecem, e só com amor e respeito sobreviverão.
Efémera não nasceu uma palavra igual às outras, ela chegou no momento em que a sorte resolveu virar a cara ao mundo, nasceu no instante anterior ao desespero e destruição. Os gestos que praticava enquanto dormia acalmavam os seus primeiros medos. O truque consistia em olhá-los de cima para baixo, com altivez. A esperança aumentou de tal forma que ela bem cedo começou a sentir-se resguardada de tudo o que ainda tinha para viver. Para além desta sua habilidade, a recém nascida demonstrou, ainda, ser capaz de aprender imensas coisas num só dia. Até os engenheiros que mais duvidavam das suas faculdades, por ser ainda tão jovem, cedo ficaram rendidos à personalidade de Efémera. A fábrica de palavras tinha dado origem a um ser de coração imenso, leal e corajoso, criado de maneira a ser impossível alguém poder confundi-la com uma outra palavra.
Efémera foi construída para durar muito para além dos tempos, para subsistir para além da era dos mortais, para trabalhar com gosto e afinco e comportar-se de acordo com as histórias e as memórias de quem tinha de imortalizar. Ela seria o sopro com o qual os mortos se eternizariam e venceriam as banalidades das coisas vulgares.
Com algum dramatismo, a nova palavra foi de imediato batizada de Efémera! Graciosa, bendita, última palavra nascida, com sorte tamanha, no segundo antes da Grande Destruição. Importava mantê-la ativa, pois tudo dependia daquilo que Efémera viesse a registar - as vidas das almas, os sonhos das almas, e os mundos mais difíceis de conhecer.
Efémera! Jovem palavra amiga, alma gémea com quem todos gostariam de conversar. Abraçá-la, sentir-lhe o coração aos saltos dentro do peito, um coração capaz de amar verdadeiramente, esse era o desejo de qualquer mortal.
O princípio da vida de Efémera foi solto e tonto como só os inícios de vida das palavras conseguem ser. Foi despreocupado, desprendido. Ela nasceu para ser a expressão imaterial de todas as almas, mesmo das mais desinteressantes e horríveis, das não esforçadas, das ingratas, mesmo das perdidas.
Existir dentro da alma de alguém que procurava reencontrar nela a sua casa, como se Efémera fosse a materialização do corpo físico de quem a desejava, proporcionava-lhe uma estranha sensação de alívio.
- Que sonhos são estes, estranhos pensamentos não totalmente perdidos à nascença? Que dúvidas são estas que ainda não sou capaz de decifrar? As diversas imagens criadas pela mente obrigam-me a constatar o óbvio: tudo o que vejo enquanto durmo mais não é que uma imensa ficção, inevitável para encontrar o meu rumo, o meu caminho.


terça-feira, 24 de maio de 2016

06 - A Longa Escuridão


Os trabalhadores ficaram bastante nervosos com os efeitos terríveis causados pela Grande Destruição, e muitos escolheram acalmar os nervos com cigarros que acenderam uns atrás de outros. Os seguranças e os guardas eram os que demonstravam maior nervosismo. Pensaram que seriam imediatamente apontados como os principais responsáveis pela tragédia, eram os mais que prováveis bodes expiatórios de tudo o que de mal ali estava a acontecer. As suas tarefas eram as mais rotineiras de todas, e também as mais monótonas. Tinham de executar constantemente os mesmos movimentos, repetir até à exaustão as mesmas ações, dia após dia, semana após semana, e isso desgastava-os psicologicamente. Era um cansaço mental, mais do que físico, e poucos apreciavam o que ali tinham de fazer, mas aquele era o seu trabalho. A grande usina vislumbrava-se por mais de uma centena e meia de quilómetros, ocupando toda a paisagem. Era ali que a esmagadora maioria das famílias do planalto ganhava o seu sustento, ali nasciam, cresciam, trabalhavam, e ali acabavam por falecer, principalmente durante o inverno rigorosíssimo que se fazia sentir naquelas paragens. Os antigos diziam que o frio, certa vez, foi tanto que terá conseguido congelar o movimento do planeta. Muitos sucumbiam durante a Longa Escuridão que se seguiu e que tudo mudou.

Animais muito estranhos começaram a aventurar-se até junto da entrada do complexo onde as palavras eram fabricadas. Neves perpétuas e muralhas altíssimas de gelo protegiam, em silêncio, os trabalhadores dos ataques das feras, quebrando-lhes os intentos. Os grandes monstros cinzentos, misto de iaque e de mamute, abriram as bocas e urraram, em uníssono, cheios de vontade de trepar. Os mais ferozes e famintos ainda correram e lançaram os corpos violentamente contra as muralhas para as tentar derrubar. Nenhum animal, que se saiba, conseguiu alcançar sucesso nesse mister. Sempre que o faziam, gritavam e urravam com grande determinação, apregoando assim aos ventos gélidos que eram os novos donos da escuridão. Foram vencedores de um combate desigual, derrotaram o silêncio do lugar, e celebraram esse sucesso durante meses fazendo estremecer a terra e os céus com os seus gritos fantásticos. Os urros das bestas eram insuportáveis, e depressa consumiram a paciência dos habitantes e dos trabalhadores da fábrica que ficaram à beira da loucura.
A noção da realidade foi transformada para sempre. Apenas Efémera resistiu, vitoriosa, e foi capaz de vir ao mundo sem nada saber acerca destes acontecimentos.
Adormeceu com as mãos debaixo do pequeno rosto delicado, semente quase perfeita de um mundo paralelo que terá de fazer acontecer.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

05 - A dança das palavras



A descida da ravina durou o dia inteiro. Efémera só tocou o chão depois da noite ter chegado. Era uma palavra exausta, mas feliz. Alguma coisa lhe dizia que aquele lugar ainda não tinha sido pisado por nenhuma palavra. Sentiu-se especial, e deitou-se para descansar. Antes de fechar os olhos, deu de beber à sede e de comer à fome. As palavras não necessitam de muito conforto para dormir, até porque não adormecem de verdade. Transformam-se, mimetizam-se, ficam quase ausentes, quase invisíveis, procuram passar despercebidas aos possíveis predadores. A sorte de Efémera era que, por aquelas bandas, não existiam caçadores de palavras nem de frases que a pudessem atormentar, e foi então que ela dançou. Aquela palavra estava demasiado ansiosa e só pensava no que o novo dia teria para lhe oferecer. Parar a música que alimentava a jovem criatura seria impossível. As palavras não nascem para ser interrompidas, nascem para ensaiar as suas virtudes até ao limite do tolerável.

Efémera sonhou que estava pronta para dar início aos ensaios mais complicados, sentia-se segura apesar de ser demasiado jovem para assumir um risco tão grande. Exausta, adormeceu sorridente, orgulhosa com os primeiros meses de existência. Não se imaginava a fazer mais nada senão aquele trabalho. Uma palavra é quem acompanha, quem alinha, quem experimenta e muda, quem corrige, quem vai a todos os lugares, os que estão perto e os distantes, é quem transporta, quem chega e quem se despede, quem mostra como se faz, quem ensina e quem aprende.

Efémera dançou, e o sol ficou sentado, quieto, a observar e a bater palmas, devagarinho, para não a incomodar.

sábado, 21 de maio de 2016

04 - A fábrica ruiu




Ravinas mimetizadas na paisagem, quase invisíveis, aconteceram. Essas novas feridas foram abertas por um terramoto justiceiro, aliado cruel do poderoso ciclone. As duas entidades ajudaram a desvendar um mundo estranho e misterioso aos olhos dos povos daquele vale. Efémera quis ajudá-los a descrever memórias e sensações, desejou desenhar inícios e conclusões, quis iluminar páginas vazias contando todas as histórias daquela civilização até que as lágrimas deixassem de acontecer. Quando terminou, Efémera sentiu-se uma heroína. Os seus feitos ajudaram a construir muitas histórias e ela soube que tinha chegado o tempo de partir. Sem se despedir, desceu, destemida, pela ravina mais vertiginosa que encontrou, carregada com uma espingarda às costas, comida para alguns dias e água que bastasse. O peso era de monta e as pernas começaram a fraquejar. Os dedos das mãos estavam feridos mas ela amparava-se às paredes escarpadas da ravina com a mesma audácia e destreza com que dera início ao exercício. A palavra chorou de felicidade por ter conseguido terminar, com absoluto sucesso, a sua primeira grande obra. Avançou com o orgulho colado ao corpo minúsculo, saltou para um pequeno nicho aberto na parede vertical onde se sentou para descansar, agora que estava quase a meio da falésia.


- Consegui. O tempo passou sem dele dar conta, e eis que vejo o nascer do sol desta manhã que chegou célere, quase sem aviso. Já fui capaz de ser palavra, sei o que me custou, mas aprendi como fazer de agora em diante. Sou diferente das outras que também deambulam por serras desconhecidas. São a nossa casa em lugar nenhum, esta é a minha, e sigo pelos passeios que me pertencem, paredes e vales e montanhas e rios e nuvens e escadas que construirei. Ficarei a observar o céu mais um instante, antes que passe, antes que morra o instante que já não está, que acaba de adormecer gerando um intenso clarão branco, dando lugar a outro instante que também acaba de adormecer.


O dia nasceu, de novo, e era abril, alegre mês para as palavras jovens, e Efémera era de todas a mais nova. Quem poderia imaginar, se nem ela sabia. Desde o seu nascimento, mais nenhuma aconteceu ou foi criada. Era difícil manter a harmonia das coisas se não se encontrasse rapidamente solução para o inquietante problema que atormentava a mente dos criadores, e não era por serem mandriões ou por lhes faltarem as ideias. Era algo novo, nunca visto, mas perfeitamente explicável. Foi uma tragédia de bíblicas proporções. O pior dos cenários aconteceu - A maior fábrica de palavras dos universos conhecidos entrou em colapso!


Um manto delicado e húmido, quase infinito, foi colocado por cima dos telhados dos edifícios. A temperatura das turbinas aumentou de tal forma que obrigou os engenheiros e mestres de produção a improvisar aquela solução para tentar resolver a situação. O tanque principal estava prestes a explodir e as grandes paredes envidraçadas mudaram de cor antes de se estilhaçarem e rasgarem em milhões de tiras o manto humedecido. Ninguém se apercebeu ou sabia do que pudesse ter estado na origem do problema, mas a reação dos trabalhadores e dos membros da direção foi a mais sensata dado o dramatismo da situação. Fugiram sobressaltados, e o silêncio que sempre reinara por ali desapareceu. Primeiro escutou-se um tremendo urro, depois silvos agudos como lâminas, e por fim os rebentamentos assustadores de muitas explosões.


Era vital para a reputação da empresa que todos se salvassem, ninguém podia morrer no acidente. Os seguranças e as equipas médicas e de enfermagem responsáveis pelos primeiros socorros agiram de imediato para evitar que o número de feridos pudesse aumentar. Mas o dano mais gravoso tinha mesmo acontecido. O cérebro, o coração e os ossos principais que constituíam o núcleo central da grande máquina ficaram severamente danificados. A produção da fábrica de palavras ficou interrompida por tempo indeterminado.


Efémera foi a última palavra a nascer antes da Grande Destruição, (assim foi batizado o nefasto acontecimento), tornando-se de imediato a mais importante de todas.


Ela não o sabia, como é que ela o podia saber? As palavras frequentam outro nível de existência depois de nascerem e esta era uma notícia que pouco ou nada a ajudaria.

03 - Sangue




A jovem palavra bem cedo começou a pensar. A vida iniciou-se no limiar da ilusão. Outras como ela se perderam nestes inícios titubeantes tão complexos. São antigas formas de criação, lamentos perpétuos que rasgam a inexistência com o poder avassalador de mil tufões. Outra seria se não tivesse acontecido, do nada esperançoso veio ao mundo, Efémera, doce e quente, em forma de canções escutou o que desconhecia, e o sangue fervilhou de imediato nas veias minúsculas do seu corpo acelerando-lhe o microscópico coração. Bem cedo o líquido viscoso a invadiu por dentro assumindo o controlo total das vísceras da palavra, os braços e as pernas ficaram dormentes e ela pensou reconhecer aquele lugar onde passeava.

- Magnífica a paisagem que se estende perante mim. Sou viajante solitária nestas paragens, contudo, mesmo sabendo que aqui nunca antes fui iluminada, reconheço muitos detalhes daquilo que vejo, sei da lua vigilante que ainda se pode observar apesar do dia ter nascido, sei do travo adocicado deste ar, sei todos estes aromas e odores, sei que o sei, porquê, não sei.

Tinha feito um mês exato naquele dia desde que uma tempestade avassaladora passou por ali, um sobressalto de poder devastador transformou os sonhos dos habitantes do vale alterando-lhes o futuro que passou a ser incerto.


02 - Efémera





Aconteceu este nascimento, desenho abstrato em branca nuvem, página montanha que a viu nascer. A palavra outrora adormecida, inerte, assumiu com bravura os primeiros instantes de existência. Efémeras houve que viveram assim tempo nenhum, por isso o nome lhe ficou tão bem. Efémera não negou o sentimento de liberdade com que se construiu a sua primeira rotina de vida, soltou as asas e esvoaçou pelo éter dissolvente rasando mil nuvens esbranquiçadas. Atravessou névoas geladas que cobriam os altos cumes da cordilheira que a viu nascer e perdeu-se no meio daqueles silêncios embrutecidos, primários, apaixonantes.
- A estrada dos céus é serena. Sou Efémera, palavra acabada de nascer, inventada, gritada e escrita em parte incerta, atrevo-me a caminhar. Finjo que existo, sou talvez cinza soprada pelo vento, carbono penitente parido pelas chamas de um fogo improvável, um quase delírio, Efémera nascida de labaredas perpétuas que ninguém consegue vislumbrar.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

01 - Aqui e agora





Chegam, delicadas, palavras brilhantes do mesmo nada irrequieto onde gosto de me refugiar. Conseguir escutá-las é um enorme privilégio, mas a tarefa é árdua e nem sempre frutuosa. Nesse universo bipolar, real e irreal, sucessivas e infinitas ondas de energia deram origem a todas as formas de vidas e a todas as entidades cósmicas. Esses ecos distantes e sussurrantes sou eu e todos os outros que me pertencem.
E eis que surge a recompensa.
A palavra nasceu durante a madrugada da noite mais escura, de cesariana, numa sala de partos onde reinava a confusão. A menina chorou, depois de ter sido virada de cabeça para baixo, tal como veio ao mundo, e gritou bem alto pela primeira vez, dando pleno uso aos pulmões. O som era distante, constante, e a menina palavra, que não tinha pernas nem braços, requisitou-os de imediato aos restantes atores. Aquele lugar ainda agora não existia, e agora já existe, porque a menina palavra nasceu à procura de luz.
- Foi uma sorte ter nascido, uma sorte destas, assim tão estranha, não é para todas as palavras. Germinei ao fim de tantos anos neste lugar outrora inexistente, mentira criada pela mente, labirinto esperançoso, estranha barriga de aluguer.
A palavra andou à deriva antes de acontecer. Muda, um ogre selvagem quase monstruoso de tamanho assustador, encharcada em suor, baba, ranho, fezes e urina. Foi com eles que deu entrada neste mundo. Ninguém gosta de nascer de maneira limpa e assética, quase como se tal não tivesse acontecido. O nascimento é um processo sujo, doloroso, irreal, duradouro, uma quase mentira que se ergue do outro lado do muro, e deveria ser quase efémero para ser mais fácil esquecer. As dores de parto de cada uma das palavras existentes são esculturas outrora conhecidas acabadas de despedaçar, são almas penadas viajando por lugares que preferíamos nunca conhecer, são pássaros negros voando sem rumo nem destino, mentiras criadas por delírios abandonados à sorte dos ventos, meras obras do acaso, construções milenares, húmidas, majestosas e primitivas.
- Nasci para ser livre, construída para voar.
O calor na pequena sala de partos era quase insuportável, e as paredes transformaram-se numa vasta cordilheira de picos gelados cobertos por neves eternas. A luz refletida nas montanhas cegava e todos ficaram imóveis na sala após a transformação. O fora, que agora era o dentro, embelezou e arrefeceu o ambiente iluminado por um sol envergonhado que resolveu acontecer. A jovem palavra começou a trepar pelas paredes brancas da sala imensa como um animal rastejante que não era, e tapou o sol por um breve instante, para melhor se aquecer.
- Como foi que aqui cheguei? Estava prisioneira, sem o ser, agora avanço por um corredor criado para me abrigar, esta brancura imensa onde me sinto em casa, abraço a paz construída nestes picos de solidão alva temperada com um céu azul imaculado.
Aquilo era bonito demais. Sentado ao lado da palavra estava um pequeno rouxinol, irmão mais novo de quatro pássaros iguais. Tinham caído no esquecimento antes da visita da jovem criatura acabada de nascer. Era hábito os quatro irmãos encontrarem-se ali de manhãzinha – era comum, por aquelas paragens, os rouxinóis testemunharem o nascimento das palavras, e as rotinas desses procedimentos fazem parte da sua própria existência - era um instinto antigo, muito primitivo, preservado por essa espécie nos picos gelados. As outras aves chegaram à vez e copiaram os gestos do irmão. Apesar de não conseguirem ver a palavra que ali foram celebrar, sabiam e sentiam a sua presença, e prepararam-se para dar início ao ritual. Recordaram tudo o que já tinham feito e contaram as suas façanhas à pequena palavra, em forma de canções. A festa durou todos os dias e todas as noites que ela escolheu, e foram muitos os dias e as noites consagrados pela jovem palavra para o efeito. Tinha de decorar e reaprender muitas histórias para conseguir voar. Enquanto delas não tomou conhecimento, não descansou, e os dias e as noites foram passando enquanto a música saía em grandes quadrifonias dos pequenos bicos afinados dos quatro rouxinóis. O corpo dos pássaros mudava de cor consoante o timbre das notas, o vermelho intenso e os laranjas luminosos surgiam com os tons mais graves, depois verdes musgo, verdes claros, amarelos e quase dourados brilharam num intenso arco-íris sempre que notas mais agudas se faziam escutar.
- Deveríamos ser todas recebidas assim após o nosso nascimento. Este lado de cá das coisas inexistentes é mais aprazível se a cerimónia se perpetuar. É tão bonito o que vocês me contam! Serei eu capaz de escutar tudo o que vocês têm para me cantar?
Um novo dia acordou, e uma noite tranquila apareceu, e as montanhas quase desapareceram por vontade da palavra que já só pensava em voar. O mais velho dos rouxinóis ofereceu-lhe um lenço de seda antes da partida, e foi com ele bem preso ao pescoço que a palavra se fez corajosa e abraçou o vazio celeste pela primeira vez.
O frio intenso do ar das montanhas congelou-lhe as carnes logo após a corrida que fez para se lançar no espaço vazio. Um milagre! Cada partícula que constituía a palavra aventureira bateu as suas próprias asas. Felizes com tamanha audácia, facilitaram o exercício à fantástica criatura recém nascida. Um gigantesco reino de fantasia passou a ser possível. A sobrevivência da palavra era agora tão lógica como o seu desaparecimento, e o oxigénio abriu-lhe a esperança, e onde antes o ar era irrespirável, deixou de o ser.
- Qual é a lógica que aqui impera? A mesma lógica que faz com que sejam raras as tempestades feitas de palavras e, assim sendo, talvez não sejam ficção as histórias que os pequenos irmãos me cantaram nas suas canções.
Descansou a palavra voadora ao planar pelo interior de nuvens densas. A sábia pequena palavra recém nascida ainda não sabia que, por ter nascido, resgatou ao deserto de onde escapara a sua existência. De desertos iguais ao seu continuarão a fugir milhões de palavras como ela.
Pertencemos ao deserto.
Aqui é o nosso deserto, construído com palavras.
Talvez a palavra voadora consiga encontrar o seu caminho, pois é nele que acredita.