Chegam, delicadas, palavras brilhantes do mesmo nada
irrequieto onde gosto de me refugiar. Conseguir escutá-las é um enorme
privilégio, mas a tarefa é árdua e nem sempre frutuosa. Nesse universo bipolar,
real e irreal, sucessivas e infinitas ondas de energia deram origem a todas as
formas de vidas e a todas as entidades cósmicas. Esses ecos distantes e sussurrantes
sou eu e todos os outros que me pertencem.
E eis que surge a recompensa.
A palavra nasceu durante a madrugada da noite mais
escura, de cesariana, numa sala de partos onde reinava a confusão. A menina
chorou, depois de ter sido virada de cabeça para baixo, tal como veio ao mundo,
e gritou bem alto pela primeira vez, dando pleno uso aos pulmões. O som era
distante, constante, e a menina palavra, que não tinha pernas nem braços,
requisitou-os de imediato aos restantes atores. Aquele lugar ainda agora não
existia, e agora já existe, porque a menina palavra nasceu à procura de luz.
- Foi uma sorte ter nascido, uma sorte destas, assim
tão estranha, não é para todas as palavras. Germinei ao fim de tantos anos
neste lugar outrora inexistente, mentira criada pela mente, labirinto
esperançoso, estranha barriga de aluguer.
A palavra andou à deriva antes de acontecer. Muda,
um ogre selvagem quase monstruoso de tamanho assustador, encharcada em suor,
baba, ranho, fezes e urina. Foi com eles que deu entrada neste mundo. Ninguém
gosta de nascer de maneira limpa e assética, quase como se tal não tivesse acontecido.
O nascimento é um processo sujo, doloroso, irreal, duradouro, uma quase mentira
que se ergue do outro lado do muro, e deveria ser quase efémero para ser mais
fácil esquecer. As dores de parto de cada uma das palavras existentes são esculturas
outrora conhecidas acabadas de despedaçar, são almas penadas viajando por
lugares que preferíamos nunca conhecer, são pássaros negros voando sem rumo nem
destino, mentiras criadas por delírios abandonados à sorte dos ventos, meras
obras do acaso, construções milenares, húmidas, majestosas e primitivas.
- Nasci para ser livre, construída para voar.
O calor na pequena sala de partos era quase
insuportável, e as paredes transformaram-se numa vasta cordilheira de picos gelados
cobertos por neves eternas. A luz refletida nas montanhas cegava e todos
ficaram imóveis na sala após a transformação. O fora, que agora era o dentro,
embelezou e arrefeceu o ambiente iluminado por um sol envergonhado que resolveu
acontecer. A jovem palavra começou a trepar pelas paredes brancas da sala
imensa como um animal rastejante que não era, e tapou o sol por um breve
instante, para melhor se aquecer.
- Como foi que aqui cheguei? Estava prisioneira, sem
o ser, agora avanço por um corredor criado para me abrigar, esta brancura
imensa onde me sinto em casa, abraço a paz construída nestes picos de solidão
alva temperada com um céu azul imaculado.
Aquilo era bonito demais. Sentado ao lado da palavra
estava um pequeno rouxinol, irmão mais novo de quatro pássaros iguais. Tinham caído
no esquecimento antes da visita da jovem criatura acabada de nascer. Era hábito
os quatro irmãos encontrarem-se ali de manhãzinha – era comum, por aquelas paragens, os rouxinóis testemunharem o
nascimento das palavras, e as rotinas desses procedimentos fazem parte da sua
própria existência - era um instinto antigo, muito primitivo, preservado
por essa espécie nos picos gelados. As outras aves chegaram à vez e copiaram os
gestos do irmão. Apesar de não conseguirem ver a palavra que ali foram
celebrar, sabiam e sentiam a sua presença, e prepararam-se para dar início ao
ritual. Recordaram tudo o que já tinham feito e contaram as suas façanhas à
pequena palavra, em forma de canções. A festa durou todos os dias e todas as
noites que ela escolheu, e foram muitos os dias e as noites consagrados pela
jovem palavra para o efeito. Tinha de decorar e reaprender muitas histórias
para conseguir voar. Enquanto delas não tomou conhecimento, não descansou, e os
dias e as noites foram passando enquanto a música saía em grandes quadrifonias dos
pequenos bicos afinados dos quatro rouxinóis. O corpo dos pássaros mudava de
cor consoante o timbre das notas, o vermelho intenso e os laranjas luminosos
surgiam com os tons mais graves, depois verdes musgo, verdes claros, amarelos e
quase dourados brilharam num intenso arco-íris sempre que notas mais agudas se faziam
escutar.
- Deveríamos ser todas recebidas assim após o nosso
nascimento. Este lado de cá das coisas inexistentes é mais aprazível se a
cerimónia se perpetuar. É tão bonito o que vocês me contam! Serei eu capaz de escutar
tudo o que vocês têm para me cantar?
Um novo dia acordou, e uma noite tranquila apareceu,
e as montanhas quase desapareceram por vontade da palavra que já só pensava em
voar. O mais velho dos rouxinóis ofereceu-lhe um lenço de seda antes da partida,
e foi com ele bem preso ao pescoço que a palavra se fez corajosa e abraçou o
vazio celeste pela primeira vez.
O frio intenso do ar das montanhas congelou-lhe as
carnes logo após a corrida que fez para se lançar no espaço vazio. Um milagre!
Cada partícula que constituía a palavra aventureira bateu as suas próprias asas.
Felizes com tamanha audácia, facilitaram o exercício à fantástica criatura
recém nascida. Um gigantesco reino de fantasia passou a ser possível. A sobrevivência
da palavra era agora tão lógica como o seu desaparecimento, e o oxigénio
abriu-lhe a esperança, e onde antes o ar era irrespirável, deixou de o ser.
- Qual é a lógica que aqui impera? A mesma lógica
que faz com que sejam raras as tempestades feitas de palavras e, assim sendo, talvez
não sejam ficção as histórias que os pequenos irmãos me cantaram nas suas
canções.
Descansou a palavra voadora ao planar pelo interior
de nuvens densas. A sábia pequena palavra recém nascida ainda não sabia que, por
ter nascido, resgatou ao deserto de onde escapara a sua existência. De desertos
iguais ao seu continuarão a fugir milhões de palavras como ela.
Pertencemos ao deserto.
Aqui é o nosso deserto, construído com palavras.
Talvez a palavra voadora consiga encontrar o seu
caminho, pois é nele que acredita.