sexta-feira, 20 de maio de 2016

01 - Aqui e agora





Chegam, delicadas, palavras brilhantes do mesmo nada irrequieto onde gosto de me refugiar. Conseguir escutá-las é um enorme privilégio, mas a tarefa é árdua e nem sempre frutuosa. Nesse universo bipolar, real e irreal, sucessivas e infinitas ondas de energia deram origem a todas as formas de vidas e a todas as entidades cósmicas. Esses ecos distantes e sussurrantes sou eu e todos os outros que me pertencem.
E eis que surge a recompensa.
A palavra nasceu durante a madrugada da noite mais escura, de cesariana, numa sala de partos onde reinava a confusão. A menina chorou, depois de ter sido virada de cabeça para baixo, tal como veio ao mundo, e gritou bem alto pela primeira vez, dando pleno uso aos pulmões. O som era distante, constante, e a menina palavra, que não tinha pernas nem braços, requisitou-os de imediato aos restantes atores. Aquele lugar ainda agora não existia, e agora já existe, porque a menina palavra nasceu à procura de luz.
- Foi uma sorte ter nascido, uma sorte destas, assim tão estranha, não é para todas as palavras. Germinei ao fim de tantos anos neste lugar outrora inexistente, mentira criada pela mente, labirinto esperançoso, estranha barriga de aluguer.
A palavra andou à deriva antes de acontecer. Muda, um ogre selvagem quase monstruoso de tamanho assustador, encharcada em suor, baba, ranho, fezes e urina. Foi com eles que deu entrada neste mundo. Ninguém gosta de nascer de maneira limpa e assética, quase como se tal não tivesse acontecido. O nascimento é um processo sujo, doloroso, irreal, duradouro, uma quase mentira que se ergue do outro lado do muro, e deveria ser quase efémero para ser mais fácil esquecer. As dores de parto de cada uma das palavras existentes são esculturas outrora conhecidas acabadas de despedaçar, são almas penadas viajando por lugares que preferíamos nunca conhecer, são pássaros negros voando sem rumo nem destino, mentiras criadas por delírios abandonados à sorte dos ventos, meras obras do acaso, construções milenares, húmidas, majestosas e primitivas.
- Nasci para ser livre, construída para voar.
O calor na pequena sala de partos era quase insuportável, e as paredes transformaram-se numa vasta cordilheira de picos gelados cobertos por neves eternas. A luz refletida nas montanhas cegava e todos ficaram imóveis na sala após a transformação. O fora, que agora era o dentro, embelezou e arrefeceu o ambiente iluminado por um sol envergonhado que resolveu acontecer. A jovem palavra começou a trepar pelas paredes brancas da sala imensa como um animal rastejante que não era, e tapou o sol por um breve instante, para melhor se aquecer.
- Como foi que aqui cheguei? Estava prisioneira, sem o ser, agora avanço por um corredor criado para me abrigar, esta brancura imensa onde me sinto em casa, abraço a paz construída nestes picos de solidão alva temperada com um céu azul imaculado.
Aquilo era bonito demais. Sentado ao lado da palavra estava um pequeno rouxinol, irmão mais novo de quatro pássaros iguais. Tinham caído no esquecimento antes da visita da jovem criatura acabada de nascer. Era hábito os quatro irmãos encontrarem-se ali de manhãzinha – era comum, por aquelas paragens, os rouxinóis testemunharem o nascimento das palavras, e as rotinas desses procedimentos fazem parte da sua própria existência - era um instinto antigo, muito primitivo, preservado por essa espécie nos picos gelados. As outras aves chegaram à vez e copiaram os gestos do irmão. Apesar de não conseguirem ver a palavra que ali foram celebrar, sabiam e sentiam a sua presença, e prepararam-se para dar início ao ritual. Recordaram tudo o que já tinham feito e contaram as suas façanhas à pequena palavra, em forma de canções. A festa durou todos os dias e todas as noites que ela escolheu, e foram muitos os dias e as noites consagrados pela jovem palavra para o efeito. Tinha de decorar e reaprender muitas histórias para conseguir voar. Enquanto delas não tomou conhecimento, não descansou, e os dias e as noites foram passando enquanto a música saía em grandes quadrifonias dos pequenos bicos afinados dos quatro rouxinóis. O corpo dos pássaros mudava de cor consoante o timbre das notas, o vermelho intenso e os laranjas luminosos surgiam com os tons mais graves, depois verdes musgo, verdes claros, amarelos e quase dourados brilharam num intenso arco-íris sempre que notas mais agudas se faziam escutar.
- Deveríamos ser todas recebidas assim após o nosso nascimento. Este lado de cá das coisas inexistentes é mais aprazível se a cerimónia se perpetuar. É tão bonito o que vocês me contam! Serei eu capaz de escutar tudo o que vocês têm para me cantar?
Um novo dia acordou, e uma noite tranquila apareceu, e as montanhas quase desapareceram por vontade da palavra que já só pensava em voar. O mais velho dos rouxinóis ofereceu-lhe um lenço de seda antes da partida, e foi com ele bem preso ao pescoço que a palavra se fez corajosa e abraçou o vazio celeste pela primeira vez.
O frio intenso do ar das montanhas congelou-lhe as carnes logo após a corrida que fez para se lançar no espaço vazio. Um milagre! Cada partícula que constituía a palavra aventureira bateu as suas próprias asas. Felizes com tamanha audácia, facilitaram o exercício à fantástica criatura recém nascida. Um gigantesco reino de fantasia passou a ser possível. A sobrevivência da palavra era agora tão lógica como o seu desaparecimento, e o oxigénio abriu-lhe a esperança, e onde antes o ar era irrespirável, deixou de o ser.
- Qual é a lógica que aqui impera? A mesma lógica que faz com que sejam raras as tempestades feitas de palavras e, assim sendo, talvez não sejam ficção as histórias que os pequenos irmãos me cantaram nas suas canções.
Descansou a palavra voadora ao planar pelo interior de nuvens densas. A sábia pequena palavra recém nascida ainda não sabia que, por ter nascido, resgatou ao deserto de onde escapara a sua existência. De desertos iguais ao seu continuarão a fugir milhões de palavras como ela.
Pertencemos ao deserto.
Aqui é o nosso deserto, construído com palavras.
Talvez a palavra voadora consiga encontrar o seu caminho, pois é nele que acredita.

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