sábado, 21 de maio de 2016

04 - A fábrica ruiu




Ravinas mimetizadas na paisagem, quase invisíveis, aconteceram. Essas novas feridas foram abertas por um terramoto justiceiro, aliado cruel do poderoso ciclone. As duas entidades ajudaram a desvendar um mundo estranho e misterioso aos olhos dos povos daquele vale. Efémera quis ajudá-los a descrever memórias e sensações, desejou desenhar inícios e conclusões, quis iluminar páginas vazias contando todas as histórias daquela civilização até que as lágrimas deixassem de acontecer. Quando terminou, Efémera sentiu-se uma heroína. Os seus feitos ajudaram a construir muitas histórias e ela soube que tinha chegado o tempo de partir. Sem se despedir, desceu, destemida, pela ravina mais vertiginosa que encontrou, carregada com uma espingarda às costas, comida para alguns dias e água que bastasse. O peso era de monta e as pernas começaram a fraquejar. Os dedos das mãos estavam feridos mas ela amparava-se às paredes escarpadas da ravina com a mesma audácia e destreza com que dera início ao exercício. A palavra chorou de felicidade por ter conseguido terminar, com absoluto sucesso, a sua primeira grande obra. Avançou com o orgulho colado ao corpo minúsculo, saltou para um pequeno nicho aberto na parede vertical onde se sentou para descansar, agora que estava quase a meio da falésia.


- Consegui. O tempo passou sem dele dar conta, e eis que vejo o nascer do sol desta manhã que chegou célere, quase sem aviso. Já fui capaz de ser palavra, sei o que me custou, mas aprendi como fazer de agora em diante. Sou diferente das outras que também deambulam por serras desconhecidas. São a nossa casa em lugar nenhum, esta é a minha, e sigo pelos passeios que me pertencem, paredes e vales e montanhas e rios e nuvens e escadas que construirei. Ficarei a observar o céu mais um instante, antes que passe, antes que morra o instante que já não está, que acaba de adormecer gerando um intenso clarão branco, dando lugar a outro instante que também acaba de adormecer.


O dia nasceu, de novo, e era abril, alegre mês para as palavras jovens, e Efémera era de todas a mais nova. Quem poderia imaginar, se nem ela sabia. Desde o seu nascimento, mais nenhuma aconteceu ou foi criada. Era difícil manter a harmonia das coisas se não se encontrasse rapidamente solução para o inquietante problema que atormentava a mente dos criadores, e não era por serem mandriões ou por lhes faltarem as ideias. Era algo novo, nunca visto, mas perfeitamente explicável. Foi uma tragédia de bíblicas proporções. O pior dos cenários aconteceu - A maior fábrica de palavras dos universos conhecidos entrou em colapso!


Um manto delicado e húmido, quase infinito, foi colocado por cima dos telhados dos edifícios. A temperatura das turbinas aumentou de tal forma que obrigou os engenheiros e mestres de produção a improvisar aquela solução para tentar resolver a situação. O tanque principal estava prestes a explodir e as grandes paredes envidraçadas mudaram de cor antes de se estilhaçarem e rasgarem em milhões de tiras o manto humedecido. Ninguém se apercebeu ou sabia do que pudesse ter estado na origem do problema, mas a reação dos trabalhadores e dos membros da direção foi a mais sensata dado o dramatismo da situação. Fugiram sobressaltados, e o silêncio que sempre reinara por ali desapareceu. Primeiro escutou-se um tremendo urro, depois silvos agudos como lâminas, e por fim os rebentamentos assustadores de muitas explosões.


Era vital para a reputação da empresa que todos se salvassem, ninguém podia morrer no acidente. Os seguranças e as equipas médicas e de enfermagem responsáveis pelos primeiros socorros agiram de imediato para evitar que o número de feridos pudesse aumentar. Mas o dano mais gravoso tinha mesmo acontecido. O cérebro, o coração e os ossos principais que constituíam o núcleo central da grande máquina ficaram severamente danificados. A produção da fábrica de palavras ficou interrompida por tempo indeterminado.


Efémera foi a última palavra a nascer antes da Grande Destruição, (assim foi batizado o nefasto acontecimento), tornando-se de imediato a mais importante de todas.


Ela não o sabia, como é que ela o podia saber? As palavras frequentam outro nível de existência depois de nascerem e esta era uma notícia que pouco ou nada a ajudaria.

Sem comentários:

Enviar um comentário