Ravinas mimetizadas na paisagem, quase invisíveis, aconteceram.
Essas novas feridas foram abertas por um terramoto justiceiro, aliado cruel do
poderoso ciclone. As duas entidades ajudaram a desvendar um mundo estranho e misterioso
aos olhos dos povos daquele vale. Efémera quis ajudá-los a descrever memórias e
sensações, desejou desenhar inícios e conclusões, quis iluminar páginas vazias contando
todas as histórias daquela civilização até que as lágrimas deixassem de acontecer.
Quando terminou, Efémera sentiu-se uma heroína. Os seus feitos ajudaram a
construir muitas histórias e ela soube que tinha chegado o tempo de partir. Sem
se despedir, desceu, destemida, pela ravina mais vertiginosa que encontrou,
carregada com uma espingarda às costas, comida para alguns dias e água que
bastasse. O peso era de monta e as pernas começaram a fraquejar. Os dedos das
mãos estavam feridos mas ela amparava-se às paredes escarpadas da ravina com a
mesma audácia e destreza com que dera início ao exercício. A palavra chorou de
felicidade por ter conseguido terminar, com absoluto sucesso, a sua primeira
grande obra. Avançou com o orgulho colado ao corpo minúsculo, saltou para um
pequeno nicho aberto na parede vertical onde se sentou para descansar, agora
que estava quase a meio da falésia.
- Consegui. O tempo passou sem dele dar conta, e eis
que vejo o nascer do sol desta manhã que chegou célere, quase sem aviso. Já fui
capaz de ser palavra, sei o que me custou, mas aprendi como fazer de agora em
diante. Sou diferente das outras que também deambulam por serras desconhecidas.
São a nossa casa em lugar nenhum, esta é a minha, e sigo pelos passeios que me
pertencem, paredes e vales e montanhas e rios e nuvens e escadas que construirei.
Ficarei a observar o céu mais um instante, antes que passe, antes que morra o
instante que já não está, que acaba de adormecer gerando um intenso clarão
branco, dando lugar a outro instante que também acaba de adormecer.
O dia nasceu, de novo, e era abril, alegre mês para as
palavras jovens, e Efémera era de todas a mais nova. Quem poderia imaginar, se
nem ela sabia. Desde o seu nascimento, mais nenhuma aconteceu ou foi criada. Era
difícil manter a harmonia das coisas se não se encontrasse rapidamente solução para
o inquietante problema que atormentava a mente dos criadores, e não era por
serem mandriões ou por lhes faltarem as ideias. Era algo novo, nunca visto, mas
perfeitamente explicável. Foi uma tragédia de bíblicas proporções. O pior dos cenários
aconteceu - A maior fábrica de palavras dos universos conhecidos entrou em colapso!
Um manto delicado e húmido, quase infinito, foi
colocado por cima dos telhados dos edifícios. A temperatura das turbinas aumentou
de tal forma que obrigou os engenheiros e mestres de produção a improvisar aquela
solução para tentar resolver a situação. O tanque principal estava prestes a
explodir e as grandes paredes envidraçadas mudaram de cor antes de se estilhaçarem
e rasgarem em milhões de tiras o manto humedecido. Ninguém se apercebeu ou sabia
do que pudesse ter estado na origem do problema, mas a reação dos trabalhadores
e dos membros da direção foi a mais sensata dado o dramatismo da situação.
Fugiram sobressaltados, e o silêncio que sempre reinara por ali desapareceu.
Primeiro escutou-se um tremendo urro, depois silvos agudos como lâminas, e por
fim os rebentamentos assustadores de muitas explosões.
Era vital para a reputação da empresa que todos se salvassem,
ninguém podia morrer no acidente. Os seguranças e as equipas médicas e de enfermagem
responsáveis pelos primeiros socorros agiram de imediato para evitar que o número
de feridos pudesse aumentar. Mas o dano mais gravoso tinha mesmo acontecido. O cérebro,
o coração e os ossos principais que constituíam o núcleo central da grande máquina
ficaram severamente danificados. A produção da fábrica de palavras ficou interrompida
por tempo indeterminado.
Efémera foi a última palavra a nascer antes da Grande Destruição,
(assim foi batizado o nefasto acontecimento),
tornando-se de imediato a mais importante de todas.
Ela não o sabia, como é que ela o podia saber? As palavras
frequentam outro nível de existência depois de nascerem e esta era uma notícia que
pouco ou nada a ajudaria.
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