A sujidade chega em
ribeiras da cor do chumbo, a paisagem é desoladora, o lixo que desagua no
oceano grande e abandonado é inimaginável e tudo é de uma tristeza sem fim. E
de repente respiro o homem que me sinto, quase infeliz, um ser incapaz de conseguir
cruzar essa fronteira que é o peso inimaginável de infelicidade dos outros, tão
desiguais a nós. Sinto frio, um frio que aperta o coração e desce pelo corpo a
se alastra e interceta a vista. Já não respiro, os pulmões estagnaram,
silenciaram a respiração compassada e cíclica, mancharam os arredores do meu
futuro. Olho-me com desconfiança no centro desta praça de casas sombrias onde um
aglomerado de edifícios decadentes decide combater ao luar. Há apenas telhados
e sombras e ramos quebrados, soltos, a pairar nos céus deste ano em que
vivemos, muito mais chocante e trágico do que os anteriores. Regressei vestido
de preto, cansado das melodias velhas escutadas em anos passados, e um mundo
inútil surgiu, no centro da praça desconhecida, um universo alienado que sabe
tudo acerca de mim, e que se expande até ao infinito. O longínquo é agora mais difícil de explicar,
e custa cada vez mais entender o sentido do nosso movimento, o modo como
pensamos e agimos, o modo como entendemos a vida, como se houvesse mais para
fazer do que simplesmente escutar a nossa respiração. O verbo acariciar foi
apagado do sistema, pontapeado para longe como uma flor inútil e venenosa. Todos
devemos ceder à tentação viscosa de deixar de sonhar, ceder à ilusão vaidosa e
decadente dos privilegiados bem-sucedidos, traçar no mapa do nosso destino
cruzes vermelhas por sobre os lugares onde antes desenhámos sonhos e plantámos
roseirais. As nossas janelas deixaram entrar viajantes desconhecidos e
indesejáveis. Fazem agora parte de nossas famílias, mas nunca os convidámos a
entrar. Flutuam, impalpáveis, dentro de quem somos, e conseguem escutar os ecos
sonoros dos nossos sonhos mais privados, transformando-nos, silenciosamente, em
personagens ocas e mudas desprovidas de existência física palpável. O sono
maravilhoso é estar desperto numa realidade limítrofe a esta outra onde
habitamos, banhada por um luar de uma lua paralela, mais luminosa e ainda mais
prateada, com palavras verdadeiras e imaculadas.
Hoje ergui-me da cama e
o sol azulado não se movia. A noite não se tinha despedido de mim, não ainda,
que eu estava a decifrar o que tinha acabado de acontecer. O abismo entre o
passado e o presente era encarnado e castanho, tinha muitas cores
desequilibradas no alto de um penhasco. Sem pensar, saltei dali de olhos
cerrados por cima das pedras e de tudo o que era diferente e já não estava.
Meditei, durante o voo, era um falcão e ao fundo o horizonte alaranjado vencia
o cinzento monótono do sono que desfiei e deixei espalhado pelo chão do quarto
onde aterrei. Eram quase dez da manhã, eram quase apenas sete. Resolvi aguardar
mais vinte minutos até renascer igual a ontem, e senti uma leve mudança no peso
das minhas células, e a minha aura insinuou-se, soprou-me aos ouvidos o tempo
real – sete e vinte cinco! Acorda! São sete e vinte e cinco… e seis, sete e
vinte e seis!
A névoa tinha deixado de existir lá fora e o
sol, não mais azulado, já se mexia.