sábado, 17 de setembro de 2016

17 - FINGIMENTO



Saí hoje da terra tão descalço como as sementes que nela lançaram, e uma inquietação húmida despiu o que de mim ainda restava deixando a nu esta realidade silenciosa que não consigo calar. O céu deste lado contém nuvens e uma paisagem feita de espuma colorida, nada aqui se encontra muito definido, o sol é ainda um corpo indistinto e nebuloso que se revela com timidez. A névoa cobriu os meus primeiros passos cambaleantes, a inquietação cresceu em mim até ter tomado conta, por inteiro, do meu corpo imperfeito. É só isto que eu sei, aqui estou, natural, como vim ao mundo, revelado nestas palavras que ninguém irá escutar, palavras sem temperatura e sem cor, compostas com as mesmas dúvidas de quem sou e o que faço aqui. Que sentido fazem as coisas que se revelam descalças de um pedaço de terra húmida? Um tronco de árvore antiga é mais verdade do que nós ou o universo onde acontecemos, é visível e robusto, projeta-se elegante e nobre por toda a parte. Começamos a observar esta evidência e ficamos confusos. Um tronco gémeo do primeiro projeta-se elegante e nobre por toda a parte, e mais centena e meia de troncos, cópias uns dos outros, se projetam, verticais e cilíndricos, lembrando-me que despertei. Estou confuso com o que aqui vim encontrar. Esta nova existência faz-me acreditar numa outra vida, num mundo diferente, menos desamparado e perdido, menos inconstante e cruel, com grandes espaços e clareiras infinitas cobertas de musgo e orvalho, um tempo quase sempre primaveril, dias chamados domingos e sonhos com os quais não nos importaríamos de conviver. Nas ruas agradáveis desse universo o tempo é preguiçoso, passeia e gosta de se abandonar em leituras de livros jovens e inteligentes. Os idosos rejuvenescem, convivem e praticam a conversação só para sentirem o prazer solene de rejuvenescer. Esperam uns pelos outros, dão as mãos às crianças que chegam para os cumprimentar. Os adultos não são insuportáveis nem desalinhados, lembram-se de quem foram, gozam a vida comum como coisa sem importância e ficcional que é, um sono misterioso do qual sabem fazer parte, com satisfação. Amam, vivem por fora e por dentro deles próprios e dos outros que, como eles, não se importam de amar. São barcos que se deixam navegar à deriva dessas sensações paradoxais que ainda hoje subsistem cimentadas no mais profundo de todos os seres amantes, fixas num passado absurdo e materno que roda os silêncios súbitos desses êxtases impossíveis de descrever. O meu outono nasceu hoje mais primaveril com esta desconhecida esperança literária, mais musical e melódico. Observo-me sem ainda me reconhecer. A minha obra está mais do que inacabada, hoje escrevo apenas mais uma pequena parte do seu início, talvez um momento mais próximo do meio desse início, só isso, pois tenho ainda tanta coisa para contar. A espera é feita com escalas intercaladas por luzes e sombras, as manhãs saltam muros para se aquecerem do lado onde o sol brilha sorridente. Espero, para me salvar, este é um pensamento que me ajuda a entender melhor o que hoje aqui se passa. Este dia natural nasceu nu e caminha descalço na mesma terra enlameada de onde nasci. Estou mais velho umas horas, e escuto a mesma música de fundo com que encarnei para pensar.

Estou umas horas mais perto de morrer, mais triste, mais alegre, vivo as horas que passam e parece que o sol me chega da cidade pela mesma vidraça onde me sento para escutar. A luz é ampla e ilumina esta folha de papel mentirosa onde me escuto. A minha consciência pode esquecer rapidamente o que foi o raiar desta manhã, e o meu pequeno mundo existiria menos brilhante, menos vida. Todos somos peregrinos, mesmo as árvores de troncos cilíndricos e verticais, principalmente as árvores, peregrinos feitos de carne e ossos e sangue e angústias a correrem-lhes nas veias. Hoje acordei para este mundo, nu, enlameado, e vi tudo o que a monotonia me queria roubar, mas não deixei. Agarrei-me com coragem às minhas momentâneas recordações, e gritei bem alto para não mais as esquecer. O esforço recompensou, o sossego volta à cidade, volta a mim, volta de novo, como semente, à terra que me viu nascer.

Senti-me hoje um outro menos estagnado, transeunte desse universo paralelo onde me transmuto, província incógnita onde a alma subsiste e brada e eu tento ser feliz. Compro o sossego possível, tão sem sentido como a calma dourada das flores azuis que tanto gostaria de te oferecer, meu amor. A dez mil quilómetros daqui seríamos outros seres postiços bem mais felizes e completos e carnais, menos sombras destes seres que aqui descrevo, menos risíveis, muito mais nós mesmos, muito mais reais. Da minha varanda é só isso que vejo, e depois desperto e renasço como as árvores de uma terra bem mais seca e gretada do que aquela que hoje acabo de contar. O meu turismo deixou de ser infinito, desço pelos cotovelos secos de uma verdade que se afigura cada vez mais improvável e distante. O meu barco não é igual ao dos adultos que hoje vi desta amurada estúpida onde subsisto. Felicidade estúpida essa, a vida dos campos, como eu a invejo e aos que são capazes de não a ignorar. Sacudo o pó que se entranhou nas fibras mais antigas do meu fato escuro, o mesmo fato do Mago, a mesma bainha das mesmas calças infelizmente escuras e sinistras e imbecis. Somos agora gaivotas, o Tejo e o Mondego ameaçam crescer e alargar as distâncias entre as margens, crescem até inundarem o país inteiro, engolem o Douro o Sado, o Minho e o Guadiana, o Norte e o Sul são água doce misturada com a salgada do Atlântico onde ontem choveu mais do que todos os outros dias. Eu e o Mago transformados em gaivotas, e a Ofélia e tu, os quatro sorrimos pois estamos vivos como sempre gostávamos de ter acontecido, gigantescamente minúsculos a observar, do alto, o mistério deste dia raro de negrume e inundação.

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