Noto, nas tardes de
verão, um prolongado desassossego onde não me enquadro. São manifestos os
contrastes entre a luminosidade intensa que as veste e as infinitas sombras
guerreiras que projetam. Aguardo, nesses dias tórridos onde me arrasto, pela
descida da noite, e que seja fresca, mas nunca o é porque no verão os dias mal
sobrevivem aos seus bafos infernais, ardentes, quebradiços, secos. O calor
aumenta e o que antes era verde acaba substituído por uma substância anterior à
era dos homens, e as labaredas engolem os versos desses dias onde eu
ambicionava conseguir respirar.
Mas houve qualquer
coisa na essência dessa noite, e na de todas as que as antecederam nesse
estranhíssimo verão. A realidade foi permutada depois de se ter confessado
ávida de sonhos. O poder das madrugadas surgiu do nada, foi-lhes indicado por
um ardina jovem que as sagrou, ao anoitecer. A monotonia escaldante dos dias
sonambulizou-se, e algum silêncio e frescura acabaram por ser recrutados para
salvar o meu verão. Alívio! Afinal ainda pertenço àquele universo inclemente
onde ninguém é rei e todos são vassalos, afinal ainda existo na mesma entidade
orgânica onde sou constantemente invadido por preocupações simbólicas que me
interrompem a solidão, contudo não as consigo afastar. Mal me reconheço, o meu
império desagregou-se e passei a ser um fugitivo sem eira nem beira. Só tenho
vontade de dormir, tal e qual como o Mago companheiro que me observa do outro
lado sem pestanejar. Arrastamo-nos pela mesma estrada de tédio com moléstia na
alma, os corpos alagados em suor, vitimados pelo burburinho incandescente da
inépcia. O verão tem destas coisas, mesmo depois de terminado, mesmo depois do
outono o ter desligado como doença maior da nossa dor. Era assim que tinha de
acontecer, não havia mais nada a fazer senão despachar esse verão para bem
longe de nós. Nele não crescem as palavras, apenas imbecilidades vazias ou
nenhumas. O calor abafa a alma, amordaça a vontade de criar e devolve-lhe uma
esterilidade madraça, é ele quem ergue o facho perverso e sórdido do maior dos
procrastinadores. Entristece-me olhar as páginas brancas desse vazio que não
devia ter acontecido. A minha estafa é agora muito maior. Tento resgatar ao
verão as palavras que habilmente me roubou. Fixo no éter as conversas improváveis
de nossos espíritos. Escuto o Mago, finjo que sou capaz de o ver trajado a
preceito, de bigode aparado até ao absurdo da perfeição. O mesmo solitário de
sempre, singular e humilde, ele que nunca o foi, mas que descreveu a existência
própria como nenhum outro ser, até ao mais ridículo e fascinante pormenor.
Eis-nos aqui perdidos na solidão deste não estar, este instante desviado da
existência, este apeadeiro lunático e deformado. A virtude dos silêncios e do
fingimento é a sua raridade e a forma perversa como viciam os incautos que
apreciam a volatilidade da memória e do tempo. São suicídios à beira de
acontecer. Eu e ao Mago somos simplesmente uns cobardes, uns cobardolas
ridículos e desajeitados que fingem sentimentos e plantam afirmações, esfomeados
de outras existências, fictícios de sangues e carnes e vivências, somos a chuva
e a lama das monções.
Onde será que deixei a
minha capa e a minha espada, hoje necessito delas para sobreviver.
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