domingo, 4 de setembro de 2016

16 - ILUSÃO



Mais um dia de cansaços ruidosos esfuma-se com rapidez. A tarde recruta-me as palavras lentas que saltitam tão monótonas como as anteriores, e igualmente inconscientes. A sua secreção é lustrosa, raramente sábia, é um quase reflexo, um quase instinto alimentado por músculos misteriosos que operam uma faixa interdita do intelecto com gestão idêntica à dos movimentos peristálticos ou às do músculo cardíaco. Para que não ficassem encerradas num perpétuo esquecimento, alguém entendeu trajá-las a preceito e arremessá-las para junto dos astros que hoje surgiram a oriente, bem para lá da serrania que cerca a cidade entorpecida. O que faço aqui? O meu rastro abriu ao meio as águas do rio que hoje atravessei duas vezes, sem metade do frio que ontem me ajudou a renascer. A vida segue lenta e sossegada pelo mesmo tempo e caminho, reproduzindo as mesmas imagens familiares até este agora onde parei para escutar. É aqui, nesta vida inexistente, construída por palavras recém-nascidas, que gosto de me esconder, pálido como sou, olheirento, um descaracterizado reflexo de mim capaz de atravessar brumas e separar os segundos de todos os minutos. Aprendi a escová-los para que possam aumentar a dimensão das horas e dos dias. Duraremos mais uns instantes, seremos longos e irracionais como anos bissextos, talvez assim a vida absurda nos ceda a felicidade de ver nascer mais palavras involuntárias, abstratas, uma completa negação de nós, muito mais gente.
Não, esta tarde não queria pensar na minha vida…
Não, esta tarde as imagens que entram pelas portas abertas da sala não são minhas. Abençoada por uma luz pálida, a chuva intensa cai acompanhada por trovões que fazem oscilar as vidraças. O ruído é bem maior do que anteriormente, eu desmaterializo-me para divergir destes dados causais ocos e absurdos que me chegam, tão reais, nesta tarde em que não queria pensar na minha vida. Quem me dera não ser agora alguém para não ter que pensar…
O Mago sopra considerações do seu trono perfumado.
A chuva intensificou o cheiro da terra, contempla a pressa dos que lhe tentam fugir, encharcados de não esperança, ausentes nos seus ofícios andantes. Apetece-me não ser igual aos outros que descem a avenida, apetece-me regressar àquela estagnação inicial em que a tarde me recrutou as palavras inaugurais desse longínquo parágrafo incoerente. Estas palavras nascem agora entre o eu que não desce a correr a estrada alagada, e os outros que estagnam as vidas nessa pressa menor em escapar ao dilúvio apocalíptico. Nem o eu desmaterializado existe, nem os viajantes ensopados. Ficámos estagnados nesta tarde a não pensar na vida.
Esta tarde apeteceu-me não pensar na minha vida…
Este ser desmaterializado em que me tornei repara na intensa luminosidade da tarde que se espreguiça. Reconheço nela algo de celestial, uma quase imposição contemplativa emerge obrigando-me a reaprender a observação das coisas comuns, e eu paro. Quem me dera regressar a este momento onde sinto, desmaterializado, a relação entre as entidades cósmicas que se entrecruzam a estonteante velocidade. Expresso-me conforme consigo, acordado, várias vezes eu próprio em muitos lugares no limite do desconhecido. Escravo de mim, avanço até bem perto da fronteira desta tarde que caminha a passos largos para o seu fim. Já não sei o que estava aqui a escrever antes de agora.
Acordo, estou cansado de acordar… e hoje não me apetece mais pensar na minha vida. É escusado, não tenho mais paciência para me aturar. Vou tentar regressar a quem fui antes deste enigmático processo de desmaterialização. Sou, também, esta alma exterior a mim!

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