Mais um dia de cansaços
ruidosos esfuma-se com rapidez. A tarde recruta-me as palavras lentas que
saltitam tão monótonas como as anteriores, e igualmente inconscientes. A sua
secreção é lustrosa, raramente sábia, é um quase reflexo, um quase instinto
alimentado por músculos misteriosos que operam uma faixa interdita do intelecto
com gestão idêntica à dos movimentos peristálticos ou às do músculo cardíaco.
Para que não ficassem encerradas num perpétuo esquecimento, alguém entendeu
trajá-las a preceito e arremessá-las para junto dos astros que hoje surgiram a
oriente, bem para lá da serrania que cerca a cidade entorpecida. O que faço
aqui? O meu rastro abriu ao meio as águas do rio que hoje atravessei duas
vezes, sem metade do frio que ontem me ajudou a renascer. A vida segue lenta e
sossegada pelo mesmo tempo e caminho, reproduzindo as mesmas imagens familiares
até este agora onde parei para escutar. É aqui, nesta vida inexistente,
construída por palavras recém-nascidas, que gosto de me esconder, pálido como
sou, olheirento, um descaracterizado reflexo de mim capaz de atravessar brumas
e separar os segundos de todos os minutos. Aprendi a escová-los para que possam
aumentar a dimensão das horas e dos dias. Duraremos mais uns instantes, seremos
longos e irracionais como anos bissextos, talvez assim a vida absurda nos ceda
a felicidade de ver nascer mais palavras involuntárias, abstratas, uma completa
negação de nós, muito mais gente.
Não, esta tarde não
queria pensar na minha vida…
Não, esta tarde as imagens
que entram pelas portas abertas da sala não são minhas. Abençoada por uma luz
pálida, a chuva intensa cai acompanhada por trovões que fazem oscilar as
vidraças. O ruído é bem maior do que anteriormente, eu desmaterializo-me para
divergir destes dados causais ocos e absurdos que me chegam, tão reais, nesta
tarde em que não queria pensar na minha vida. Quem me dera não ser agora alguém
para não ter que pensar…
O Mago sopra
considerações do seu trono perfumado.
A chuva intensificou o
cheiro da terra, contempla a pressa dos que lhe tentam fugir, encharcados de
não esperança, ausentes nos seus ofícios andantes. Apetece-me não ser igual aos
outros que descem a avenida, apetece-me regressar àquela estagnação inicial em
que a tarde me recrutou as palavras inaugurais desse longínquo parágrafo
incoerente. Estas palavras nascem agora entre o eu que não desce a correr a
estrada alagada, e os outros que estagnam as vidas nessa pressa menor em
escapar ao dilúvio apocalíptico. Nem o eu desmaterializado existe, nem os
viajantes ensopados. Ficámos estagnados nesta tarde a não pensar na vida.
Esta tarde apeteceu-me
não pensar na minha vida…
Este ser desmaterializado
em que me tornei repara na intensa luminosidade da tarde que se espreguiça.
Reconheço nela algo de celestial, uma quase imposição contemplativa emerge
obrigando-me a reaprender a observação das coisas comuns, e eu paro. Quem me
dera regressar a este momento onde sinto, desmaterializado, a relação entre as
entidades cósmicas que se entrecruzam a estonteante velocidade. Expresso-me
conforme consigo, acordado, várias vezes eu próprio em muitos lugares no limite
do desconhecido. Escravo de mim, avanço até bem perto da fronteira desta tarde
que caminha a passos largos para o seu fim. Já não sei o que estava aqui a
escrever antes de agora.
Acordo, estou cansado
de acordar… e hoje não me apetece mais pensar na minha vida. É escusado, não
tenho mais paciência para me aturar. Vou tentar regressar a quem fui antes
deste enigmático processo de desmaterialização. Sou, também, esta alma exterior
a mim!
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