Os campos dormem,
vestidos com árvores pobres agitadas por este vento forte que assobia e as
despe. A entidade poderosa levanta as folhas num turbilhão colorido, separando
as mais leves e alaranjadas das amarelas e esverdeadas. As mais pesadas e
ofegantes estão pintadas de vermelho, e as mais alegres e espirituosas, de
castanhos e dourados intensos. Esta nova ordem agita o meu adormecimento que
está igual à vontade das árvores. As clareiras estão cheias de promontórios de
folhas, e eu passo por elas arrastando as pernas ateando-lhe novos bailados
acrobáticos. Espero que voltem a descer, com a mesma inutilidade com que as
ajudei a levantar voo em direção às estrelas. Eu e as estrelas ainda hoje
esperamos, em vão, pela sua visita, escutamos os silêncios que habitam nessas
clareiras frias e esquecidas e entretemo-nos a dizer mentiras para nos
aquecermos. Amanhã acontecerá a mesma coisa, tudo se repetirá, assim está
escrito, em letras maiúsculas, num papiro delirante que não devia existir. As
palavras aí presentes são iguais ao sussurro das folhas bailarinas, e tão leves
como as emoções que ateiam as almas dos que as decifram. A melancolia do meu
adormecimento regressou para evitar que mais palavras inúteis pudessem
recompensar o que ainda falta redescobrir deste pedaço de tarde antiga. Hoje
não me é permitido sentir, nem recordar o que ontem aconteceu. Hoje dei por mim
a sentir que é possível nem sequer sentir, que tudo não passa de um gigantesco
fingimento e a que vida inteira se perdeu toda ontem, num arruamento sem saída.
Ficou estendida num beco inóspito pelo universo inteiro. A vida ser-me-á
devolvida quando conseguir declamar parte de uma das histórias escritas no
papiro delirante. Essa será uma pequena vitória, mas terei de apagar a minha
memória por inteiro antes de o fazer.
PUF! Eis a primeira
madrugada do resto de nossas vidas!
Luz branca, calor
inexistente, coisa nenhuma de todas as coisas inexistentes do que ainda não
somos. Hora de dia nenhum! O grande imperfeito nada amargurado nasceu queimado
e com um forte cheiro a enxofre. Um navio invisível tenta atravessar o nevoeiro
e rasga em dois o espaço e a luz tangível do lugar. Um ovo miraculoso pousa,
imperfeito, perpétuo, aveludado, neste que é agora o primeiro acontecimento
registado no papiro delirante. De cor amarelada e casca aveludada, enche-se de
luz e aquece. Dele sairá um ser nunca antes visto que passeará pelas encostas
inexistentes deste imperfeito nada. O navio invisível regressa e parte o ovo em
mil pedaços inúteis. A luz branca tornou-se negra, exageradamente negra, e
tomou conta de todos os espaços da embarcação. Os três mastros do navio surgem
no escuro, são fachos giratórios que iluminam a atmosfera densa. Desesperados,
vão soltando guinchos estridentes ao tombarem na paisagem turva que os engole.
Aqui não se distingue o definido do indefinido, o que é frio e o que é quente.
Derreteu-se a aresta enegrecida do último pedaço de mastro da caravela
destruidora. A sua gémea não deve tardar muito a aparecer!
PUF! Eis que novos
idênticos navios invisíveis tentam atravessar a escuridão e rasgam em dois o
espaço e a obscuridade tangível do lugar. Que importância terá a sua passagem
para o mistério que aqui acontece? De que planície chegou esta nova ficção? No
papiro delirante compreendi, pela primeira vez, o desalinho das mensagens nele contidas.
Chegam do tempo passado, estas barcas do transtorno, alheias ao início dos
inícios. Atravessam, numa diagonal absurda, a nova praça escurecida deste rio
imenso e silencioso. Embarcação após embarcação, são todas engolidas pela
paisagem com os trajes limpos e novos com que aqui chegaram. Subsiste, até
hoje, esta incoerência absurda da destruição, é um paradoxo temporal difícil de
interromper. A mim próprio me revejo na leitura que faço das palavras
escondidas no papiro delirante. O sono e a dormência continuam a ser os mesmos,
naturais, extensos, esperançosos. A tarde não terminou e eu ainda não consegui
recordar o que ontem aconteceu. O que é exterior a mim, pouco consigo observar,
e tal como o Mago que escuto, sinto, ao desatá-lo, uma grande esperança; mas
ambos reconhecemos que a esperança é literária. A criança que fomos emudeceu, e
o verde de nossas árvores é velho, não somos daqui, outrora fomos daqui, hoje
regressamos estrangeiros, como as naus, forasteiros do que vemos e escutamos,
velhos de nós.
Estava tão sossegado há
momentos, a tarde luminosa, o calor quase primaveril, e eu com o meu bom sono a
convidar-me ao marasmo açucarado. Resolvi abrir os olhos e acabar aqui
escondido nestas palavras só para me sentir um outro, um outro não
necessariamente mais feliz. Transmutei-me e a alma não se calou, foi
transferida para esta aldeia de casario branco onde repouso sem dormir. Estou
debruçado da varanda, vejo o que não queria da amurada desta nau que acabará
desintegrada como as restantes, sem piedade, até que uma outra a substitua, e
outra, e outra ainda… estava eu tão sossegado há momentos…
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