quinta-feira, 1 de setembro de 2016

14 - TEMPESTADE



Os campos dormem, vestidos com árvores pobres agitadas por este vento forte que assobia e as despe. A entidade poderosa levanta as folhas num turbilhão colorido, separando as mais leves e alaranjadas das amarelas e esverdeadas. As mais pesadas e ofegantes estão pintadas de vermelho, e as mais alegres e espirituosas, de castanhos e dourados intensos. Esta nova ordem agita o meu adormecimento que está igual à vontade das árvores. As clareiras estão cheias de promontórios de folhas, e eu passo por elas arrastando as pernas ateando-lhe novos bailados acrobáticos. Espero que voltem a descer, com a mesma inutilidade com que as ajudei a levantar voo em direção às estrelas. Eu e as estrelas ainda hoje esperamos, em vão, pela sua visita, escutamos os silêncios que habitam nessas clareiras frias e esquecidas e entretemo-nos a dizer mentiras para nos aquecermos. Amanhã acontecerá a mesma coisa, tudo se repetirá, assim está escrito, em letras maiúsculas, num papiro delirante que não devia existir. As palavras aí presentes são iguais ao sussurro das folhas bailarinas, e tão leves como as emoções que ateiam as almas dos que as decifram. A melancolia do meu adormecimento regressou para evitar que mais palavras inúteis pudessem recompensar o que ainda falta redescobrir deste pedaço de tarde antiga. Hoje não me é permitido sentir, nem recordar o que ontem aconteceu. Hoje dei por mim a sentir que é possível nem sequer sentir, que tudo não passa de um gigantesco fingimento e a que vida inteira se perdeu toda ontem, num arruamento sem saída. Ficou estendida num beco inóspito pelo universo inteiro. A vida ser-me-á devolvida quando conseguir declamar parte de uma das histórias escritas no papiro delirante. Essa será uma pequena vitória, mas terei de apagar a minha memória por inteiro antes de o fazer.
PUF! Eis a primeira madrugada do resto de nossas vidas!
Luz branca, calor inexistente, coisa nenhuma de todas as coisas inexistentes do que ainda não somos. Hora de dia nenhum! O grande imperfeito nada amargurado nasceu queimado e com um forte cheiro a enxofre. Um navio invisível tenta atravessar o nevoeiro e rasga em dois o espaço e a luz tangível do lugar. Um ovo miraculoso pousa, imperfeito, perpétuo, aveludado, neste que é agora o primeiro acontecimento registado no papiro delirante. De cor amarelada e casca aveludada, enche-se de luz e aquece. Dele sairá um ser nunca antes visto que passeará pelas encostas inexistentes deste imperfeito nada. O navio invisível regressa e parte o ovo em mil pedaços inúteis. A luz branca tornou-se negra, exageradamente negra, e tomou conta de todos os espaços da embarcação. Os três mastros do navio surgem no escuro, são fachos giratórios que iluminam a atmosfera densa. Desesperados, vão soltando guinchos estridentes ao tombarem na paisagem turva que os engole. Aqui não se distingue o definido do indefinido, o que é frio e o que é quente. Derreteu-se a aresta enegrecida do último pedaço de mastro da caravela destruidora. A sua gémea não deve tardar muito a aparecer!
PUF! Eis que novos idênticos navios invisíveis tentam atravessar a escuridão e rasgam em dois o espaço e a obscuridade tangível do lugar. Que importância terá a sua passagem para o mistério que aqui acontece? De que planície chegou esta nova ficção? No papiro delirante compreendi, pela primeira vez, o desalinho das mensagens nele contidas. Chegam do tempo passado, estas barcas do transtorno, alheias ao início dos inícios. Atravessam, numa diagonal absurda, a nova praça escurecida deste rio imenso e silencioso. Embarcação após embarcação, são todas engolidas pela paisagem com os trajes limpos e novos com que aqui chegaram. Subsiste, até hoje, esta incoerência absurda da destruição, é um paradoxo temporal difícil de interromper. A mim próprio me revejo na leitura que faço das palavras escondidas no papiro delirante. O sono e a dormência continuam a ser os mesmos, naturais, extensos, esperançosos. A tarde não terminou e eu ainda não consegui recordar o que ontem aconteceu. O que é exterior a mim, pouco consigo observar, e tal como o Mago que escuto, sinto, ao desatá-lo, uma grande esperança; mas ambos reconhecemos que a esperança é literária. A criança que fomos emudeceu, e o verde de nossas árvores é velho, não somos daqui, outrora fomos daqui, hoje regressamos estrangeiros, como as naus, forasteiros do que vemos e escutamos, velhos de nós.
Estava tão sossegado há momentos, a tarde luminosa, o calor quase primaveril, e eu com o meu bom sono a convidar-me ao marasmo açucarado. Resolvi abrir os olhos e acabar aqui escondido nestas palavras só para me sentir um outro, um outro não necessariamente mais feliz. Transmutei-me e a alma não se calou, foi transferida para esta aldeia de casario branco onde repouso sem dormir. Estou debruçado da varanda, vejo o que não queria da amurada desta nau que acabará desintegrada como as restantes, sem piedade, até que uma outra a substitua, e outra, e outra ainda… estava eu tão sossegado há momentos…

Sem comentários:

Enviar um comentário