terça-feira, 27 de setembro de 2016

18 - COISA NENHUMA



A sujidade chega em ribeiras da cor do chumbo, a paisagem é desoladora, o lixo que desagua no oceano grande e abandonado é inimaginável e tudo é de uma tristeza sem fim. E de repente respiro o homem que me sinto, quase infeliz, um ser incapaz de conseguir cruzar essa fronteira que é o peso inimaginável de infelicidade dos outros, tão desiguais a nós. Sinto frio, um frio que aperta o coração e desce pelo corpo a se alastra e interceta a vista. Já não respiro, os pulmões estagnaram, silenciaram a respiração compassada e cíclica, mancharam os arredores do meu futuro. Olho-me com desconfiança no centro desta praça de casas sombrias onde um aglomerado de edifícios decadentes decide combater ao luar. Há apenas telhados e sombras e ramos quebrados, soltos, a pairar nos céus deste ano em que vivemos, muito mais chocante e trágico do que os anteriores. Regressei vestido de preto, cansado das melodias velhas escutadas em anos passados, e um mundo inútil surgiu, no centro da praça desconhecida, um universo alienado que sabe tudo acerca de mim, e que se expande até ao infinito.  O longínquo é agora mais difícil de explicar, e custa cada vez mais entender o sentido do nosso movimento, o modo como pensamos e agimos, o modo como entendemos a vida, como se houvesse mais para fazer do que simplesmente escutar a nossa respiração. O verbo acariciar foi apagado do sistema, pontapeado para longe como uma flor inútil e venenosa. Todos devemos ceder à tentação viscosa de deixar de sonhar, ceder à ilusão vaidosa e decadente dos privilegiados bem-sucedidos, traçar no mapa do nosso destino cruzes vermelhas por sobre os lugares onde antes desenhámos sonhos e plantámos roseirais. As nossas janelas deixaram entrar viajantes desconhecidos e indesejáveis. Fazem agora parte de nossas famílias, mas nunca os convidámos a entrar. Flutuam, impalpáveis, dentro de quem somos, e conseguem escutar os ecos sonoros dos nossos sonhos mais privados, transformando-nos, silenciosamente, em personagens ocas e mudas desprovidas de existência física palpável. O sono maravilhoso é estar desperto numa realidade limítrofe a esta outra onde habitamos, banhada por um luar de uma lua paralela, mais luminosa e ainda mais prateada, com palavras verdadeiras e imaculadas.
Hoje ergui-me da cama e o sol azulado não se movia. A noite não se tinha despedido de mim, não ainda, que eu estava a decifrar o que tinha acabado de acontecer. O abismo entre o passado e o presente era encarnado e castanho, tinha muitas cores desequilibradas no alto de um penhasco. Sem pensar, saltei dali de olhos cerrados por cima das pedras e de tudo o que era diferente e já não estava. Meditei, durante o voo, era um falcão e ao fundo o horizonte alaranjado vencia o cinzento monótono do sono que desfiei e deixei espalhado pelo chão do quarto onde aterrei. Eram quase dez da manhã, eram quase apenas sete. Resolvi aguardar mais vinte minutos até renascer igual a ontem, e senti uma leve mudança no peso das minhas células, e a minha aura insinuou-se, soprou-me aos ouvidos o tempo real – sete e vinte cinco! Acorda! São sete e vinte e cinco… e seis, sete e vinte e seis!
 A névoa tinha deixado de existir lá fora e o sol, não mais azulado, já se mexia.

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