quinta-feira, 10 de novembro de 2016

33 - INFÂNCIA



A transparência esmaga a alma incógnita, tão sozinha, do que fui. Antes a duração dos dias era diferente, possuía uma ansiedade infantil própria da idade, ocultava as emoções em sorrisos enganadores. A esperança era constante, os segredos alimentavam-na e o mar soava em ondas que se desfaziam no escuro das noites atribuladas em que crescíamos. A voz dizia as coisas que eu pensava, confidente em todos os instantes, e a espuma da onda enrolada crepitava na areia molhada antes de esfriar. Lembro-me desse instante, dos pés enregelados a receber a dádiva ao entardecer, e da voz que vinha do mar. Parou-me o coração com a mensagem daquilo que preferia não ter escutado. Estava ali, já não estou ali naquela praia, sou agora este outro as noites todas, uma desolação de espírito onde existo e mergulho, consciente de mim, consciente de todas as dores inclinadas e irritantes. Estou aqui e não penso em outra coisa, colho estas conversas distantes como a criança inoportuna que já fui, e sinto que tudo é cada vez mais igual e repetido, uma narrativa dolorosa de emoções pungentes, insatisfeitas, canções negras compostas por poesias incompletas e desconsoladas. Estou mais pálido do que ontem, uma figuração translúcida da sombra onde habito e de que sou construído, sou o condenado, o elemento grotesco onde se fixaram cansaços incompreensíveis, e todos os homens serão iguais a mim, perdidos em quartos escuros, caos monossilábicos de coisa nenhuma. O silêncio é esta pedra triste que ecoa como o som de quem chora, e a tristeza do Mago regressa a mim, a sua forma de entendimento que era o caos de coisa nenhuma…
Dói-me a emoção perdida de maneira incompleta. A loucura atingiu os desertos onde passeei, tão vazios, tão incompreensíveis, e eu resvalei pelas dunas românticas, altas como cordilheiras maduras. Ali perdi minha essência nómada, minha íntima riqueza, foi essa tragédia quem me concebeu e me devolveu a aparente normalidade que aprendi a vestir. Sou protagonista inútil deste mistério complexo, extenso e infinitesimal, onde a humildade vive liberta, a independência abre-se em flor, e os pensamentos desaguam em mares profundos e contemplativos. Escrutinei o mistério que abre intervalos na vida real e insignificante, ousei fazê-lo em pensamentos que registei, iguais a estas palavras aparadas, repentinas, a pulsar na folha entorpecida. Aflorei os contornos da poesia muda que deu cor aos meus desenhos de criança. Isolei-me para provocar uma translação nos ossos e nas carnes, e a náusea cresceu em mim.
Fiquei possuído por ela.
O cansaço instalou-se, arrancou a raiz mais profunda ao pensamento e assassinou a imaginação do meu outono trajado de verão.
Estou com mais fome do que sono, uma fome com sabor a sono guia a insegurança mitológica da minha falsidade. A viagem prolonga-se numa indefinição assustadora, e um mal-estar físico consubstancia as diferentes partes de mim. Revejo o futuro do meu passado, imperador soberano, dono das minhas frases por inteiro. O universo nunca nasceu, e nunca morrerá, é ele quem inunda as prateleiras frias e cinzentas dos meus suores, é magnânimo, a morte horrível não existe nele, nem os nascimentos atribulados ou felizes, nada que seja morte ou nascimento de coisa pálida ou retilínea ali ocorre, o vácuo infinito perpetua-se nas manhãs esperançosas que cortejam o manto de negrume, única coisa que conheceu das vastas planícies deste nosso nada.

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