domingo, 7 de agosto de 2016

11 - OUTONO



Apareci, de novo, com o mesmo aspeto de anteontem, projetado nos contornos cilíndricos das árvores, tão invisível como sempre estive, um pouco por toda a parte. Foi-me impossível despertar sem reconhecer o que outrora me foi contado, a revelação surgiu cristalina, com cheiros intensos a azeitona e a lagar a levitarem na aragem desértica de mais uma manhã. Despi o torpor sem bocejar, abdiquei do descanso e mergulhei nos ruídos da rotina matinal que me cumprimentou até os olhos deixarem de me doer. A relva ainda estava bem verde na minha memória, cortada de forma impecável, emoldurando piscinas naturais de águas tranquilas onde ninguém se banhava. Os agricultores lavravam os campos deste súbito paraíso, e o resultado da faina era guardado em casas de xisto tão selvagens como a paisagem imponente onde trabalhavam. Ajudei-os no que pude e consegui, subi as encostas das serras com a enxada às costas e a foice presa à cintura, e há muito tempo não relembrava esse eu que também fui. Senti-me menos triste nesse lugar, com as calças sujas de terra e de musgo, a camisa encharcada em suor e os cabelos desalinhados, mas bem mais consciente do que agora ao mirar o elétrico que passa e me desperta o desalinho.
Eis-me chegado ao hoje, mas o tempo de esquecê-lo depressa chegou, embrulhado na mesma luz diáfana que vestiu o meu reino neste dia. Porta aberta, porta fechada, abraço o escuro que ilumina os impérios renascidos das cinzas. Afago a terra remexida e arada com os dedos sujos e ensanguentados, limpo a face com o pó e a lama de que se formaram esses solos pedregosos outrora secos, tão vastos, e os servos bailaram e lançaram as sementes com vozes alegres, à desgarrada. As vozes fundiram-se, evocaram o poder das forças invisíveis para proteção das colheitas. - Que sejam fartas! -  e que nada as possa destruir!
Reconheci as tonalidades do céu e o que elas nos diziam, entendi as melodias das brisas e dos ventos, dormi, leve como o ar e as nuvens. Mais um sonho aconteceu, e nele fiz e antecipei coisas que só podia esperar nessa outra vida onde tudo era feito de gestos repetidos que os antigos me ensinaram. Brincava ali, naqueles territórios desconhecidos, como se sempre tivesse permanecido uma criança. Todos éramos crianças reunidas ao redor das mesmas vontades e desejos, de pés descalços, pobres, mas mais ricos do que os imperadores do planeta. Vivíamos na casa vulgar de nossos avós, sentíamos a mesma ternura desconfortável do velho colchão de palha rijo onde dormitávamos, e entretínhamo-nos a raspar a cal desalinhada da velha parede para onde nos virávamos antes de adormecer. O soalho rangia de contentamento, e assustava-nos. Mentíamos e dizíamos não ter receio do que escutávamos. Passávamos horas acordados a fazer de conta que éramos valentes, até que a mentira se desfazia e o cansaço nos vencia. Depois, a maldade decidiu transportar-me com rapidez até este hoje que aqui acontece. Viajei, célere, através destas novas palavras à velocidade do não-desejo.
Esquecer é um verbo bem diferente de sonhar, e o mais certo é ambos serem miragens do antigamente, peças soltas e desconexas de misteriosa extensão. O frio acontece, a chuva regressou de forma quase impalpável para beijar as paredes velhas dos prédios desalinhados. Tinha-me esquecido do quanto aprecio escutar o barulho da chuva a bater nas vidraças enquanto a música de Chopin desfila pela sala tranquila. Hoje chegaram as primeiras chuvas outonais, medrosas e inocentes, irregulares, e escrevo-o aqui somente para poder relembrar este dia num outro outono qualquer.

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