Desejava poder escutar
aquele fado desconhecido que o compositor vestiu com as minhas palavras ainda
por encontrar.
A canção assemelha-se a
um cântico oriental articulado com os murmúrios de uma cidade quase deserta
situada no centro de um longínquo país imaginário.
Os poemas encaixam na
melodia como se tivessem sido feitos um para o outro, e a voz humana que a
entoa, feminina, mergulha nessa história antes de cantar.
A doce balada ecoa no
ar fresco da manhã, depois atravessa as areias do deserto que rodeia a cidade
antiga e milenar.
As casas, os templos,
as avenidas e todas as demais construções permaneceram fiéis à vontade dos
homens que as ergueram do nada e as pintaram da cor do barro e da tempestade.
Perdi a conta ao número
de vezes que a tentei encontrar, dias inteiros passados de testa franzida e
olhos cerrados, a imaginar o calor impossível que a abafava, as dunas que a
escondiam, a cor da pele dos seus habitantes, os trajes e dialetos por eles
usados, e os oásis que a circundavam. Não consegui discernir muita coisa, até
que a resolvi descrever com palavras por acontecer, para não mais a esquecer,
para assim ajudar a perpetuar uma história nunca acontecida, mas
suficientemente capaz de dar origem a uma canção ainda não nascida que já
escutei.
Caio em mim e acredito
nesta espécie de sonolência que me motiva a escrever, sem propósito aparente.
Fico parado!
Aproximo-me um pouco
mais de quem julgo conhecer, e as palavras surgem, ou não, da mesma fonte, gota
a gota, com lentidão, perdidas, dispersas, entregues em mão por um rapaz
franzino que as trazia arquivadas numa mala negra de cabedal.
O miúdo ainda aqui está,
de pé, estático, a olhar para mim, de guarda-chuva na mão. Traja calções curtos
e casaco aveludado, camisa e meias brancas e uns impecáveis sapatos negros
alongados, de sola rija.
Ninguém mais disse
nada.
Lá fora, do outro lado
da vidraça desta sala onde medito, a vida passa ligeira, por vezes tomba e
esfacela o rosto no passeio deformado da rua, outras vezes ziguezagueia a imitar
os movimentos ondulantes de um réptil viscoso.
O som da chuva oprime,
sobrepõe-se aos demais, mas depressa o céu plúmbeo se alivia e as nuvens
chorosas dão lugar a outras mais tranquilas. Uma tragédia está para acontecer
na cidade oprimida, a atmosfera anda quente e abafada, uma luz natural, súbita
e intensa, pulveriza-se na estrada às onze e meia da manhã. É um sinal, uma de
várias premonições. O céu fica limpo e resplandecente para o lado norte da
cidade que hoje acordou às escuras vítima de uma inexplicável falta de luz.
Sinto-me privilegiado
por poder testemunhar tudo isto em direto, antes dos restantes mortais, que
felizmente possuem outras ocupações bem mais condizentes com um estado de alma
saudável e iluminado.
Sinto um estranho e
inexplicável privilégio por sofrer desta crueldade de não conseguir abafar a
descrição de factos invisíveis. Remeto a explicação do fenómeno para homens bem
mais experientes e doutos nestas matérias, peritos destacados e premiados, com
obras publicadas nas áreas em questão. Eu prefiro regressar à cidade primeira
onde escutei o meu fado desconhecido. Foi também para isso que hoje sai de casa,
e para conseguir sobreviver.
Hoje inventei mais esta
mentira, e assim fiquei um pouco mais contente, porque existi no meio dela, e
revi gente conhecida, um eu que já tinha sido a olhar para mim. Tive a certeza
que era eu o rapaz que me entregava a mala negra com as palavras que
necessitava para poder mentir. Depois de ter descido a rua, num dia chuvoso, o
eu menino passado cumpriu as ordens que lhe disseram para entregar estas ideias
aqui desenhadas ao eu homem presente. Não gostou lá muito do que viu, ficou
admirado com a longitude e latitude dos lugares e com a fluidez irresponsável
do Deus tempo.
Não admira que o Mago,
que também escrevia do lado de dentro das suas vidraças, mentisse, cheio de
certezas, pois todos os recantos são inúteis. Talvez menos inúteis possam ser
os recantos inúteis onde nos refugiamos para conseguir escutar a nossa canção.
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