terça-feira, 20 de dezembro de 2016

43 - CÃES ENTRE GATOS



A humanidade devia ser um vasto império de canina ou felina felicidade, sem almas despedaçadas por ideais deploráveis, ou deuses imperfeitos de incomparáveis dimensões.
Ocorre-me que os gatos e os cães conseguem viver vidas com uma grande satisfação simplesmente por não praticarem guerras horrendas e cruéis onde grassa a estupidez.
Um gato sabe como se perder na contemplação profícua das coisas inúteis. Um cão sabe praticar, de maneira sábia, o repouso tranquilo e dolente. Estende o corpo naquele exato lugar onde o sol morno lhe aconchega a indiferença e a paz chega de todos os lugares.
O mundo sem desaires nem desastres, sem pesadelos, sem esquerdos ou direitos, sem pretos ou brancos, sem sofrimentos ou devaneios opressores. Gatos e cães estão felizes no lugar onde a brisa sopra, as árvores dão sombra, o sol brilha e o coração pode bater sem sobressalto. Sem ciência nem religião, os dias passam serenos neste vasto império onde gatos e cães sonham antes de adormecer. Sonham apenas pelo prazer de sonhar, pelo consolo da inação retemperadora, são reis e imperadores desse mundo sem tronos nem coroas, sem dinheiro ou ostentação, e até o devaneio e a loucura se mantêm afastados desse lugar pois não o compreendem.
A natureza destes bichos é mesmo assim, construída por uma sabedoria onde as teorias da conspiração não fazem sentido, onde a política não tem lugar, onde o dinheiro não se fabrica, e onde a lisura reina. Se um cão ladra, é porque o ato constitui a sua força, e ele sente-se bem ao expressar assim a sua presença. Um gato passa ao seu lado, estendendo o corpo listrado de animal inteligente e poderoso, sem lhe dar trela. Não se deixa afetar pelos latidos pois só vê o que lhe interessa, e ruma rapidamente para a sua própria ordem das coisas. Enrola-se em torno de si mesmo após ter dado duas voltas circulares ao espaço que passou a habitar. Aconchega a cabeça por debaixo das patas, e tapa o focinho com a cauda em movimentos muito lentos, cadenciados e precisos. Um relojoeiro suíço seria incapaz de reproduzir a beleza e elegância do mecanismo interno que acionou o movimento do animal. Sem lapsos, o felino ajustou o seu mundo à humanidade que só ele entende e onde existe uma razão para tudo.
Não é por acaso que os gatos também sonham, e não é por acaso que os cães sonham também. Seria um erro julgar que não o fazem ou que neles não existe uma humanidade bem mais grandiosa que a nossa. Sonham a existência do Infinito e a bondade de um Criador, sonham sofismas sem preconceitos, sonham com distinção, sonham sonhos burgueses, é isso que os caracteriza, pois nada há de mais burguês que uma humanidade canina e felina a dormitar languidamente num virtuosismo sem igual.
Fico consolado ao imaginar uma humanidade assim, consolo-me na sombra desta tarde e sento-me, glorioso, a apanhar banhos de sol outonal onde mais nenhum felino veio descansar. Lambo as patas com prazer, passo-as por detrás das orelhas e por sobre o focinho, sinto-me mais do que o rei deste lugar, e uma glória ímpar protege os pelos do meu corpo listrado.
- Miauuuuu!
Um cão passa a ladrar lá longe, já meio indefinido. O vadio que é mais Imperador e Poeta que todos os homens, volta a ladrar na sombra que o esconde junto à serrania onde mora.
- Ão Ão Ão!
As vidas humanas não podem fazer parte desta equação, nesta humanidade canina e felina só os animais podem manter a lei profunda que rege a lógica do lugar.
Se o macaco aqui chegar, o melhor mesmo é assustá-lo com miados, urros e latidos, e esperar que isso seja o suficiente para evitar que o símio possa evoluir até ser capaz de reger a orquestra que se encarregará da sua própria destruição.
Só me voltarei a erguer depois de uma sesta retemperadora. Depois, a lua grande elucidar-me-á e eu saberei o que fazer a seguir…

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