A humanidade devia ser
um vasto império de canina ou felina felicidade, sem almas despedaçadas por
ideais deploráveis, ou deuses imperfeitos de incomparáveis dimensões.
Ocorre-me que os gatos
e os cães conseguem viver vidas com uma grande satisfação simplesmente por não
praticarem guerras horrendas e cruéis onde grassa a estupidez.
Um gato sabe como se
perder na contemplação profícua das coisas inúteis. Um cão sabe praticar, de
maneira sábia, o repouso tranquilo e dolente. Estende o corpo naquele exato
lugar onde o sol morno lhe aconchega a indiferença e a paz chega de todos os
lugares.
O mundo sem desaires
nem desastres, sem pesadelos, sem esquerdos ou direitos, sem pretos ou brancos,
sem sofrimentos ou devaneios opressores. Gatos e cães estão felizes no lugar
onde a brisa sopra, as árvores dão sombra, o sol brilha e o coração pode bater
sem sobressalto. Sem ciência nem religião, os dias passam serenos neste vasto
império onde gatos e cães sonham antes de adormecer. Sonham apenas pelo prazer
de sonhar, pelo consolo da inação retemperadora, são reis e imperadores desse
mundo sem tronos nem coroas, sem dinheiro ou ostentação, e até o devaneio e a
loucura se mantêm afastados desse lugar pois não o compreendem.
A natureza destes
bichos é mesmo assim, construída por uma sabedoria onde as teorias da
conspiração não fazem sentido, onde a política não tem lugar, onde o dinheiro
não se fabrica, e onde a lisura reina. Se um cão ladra, é porque o ato
constitui a sua força, e ele sente-se bem ao expressar assim a sua presença. Um
gato passa ao seu lado, estendendo o corpo listrado de animal inteligente e
poderoso, sem lhe dar trela. Não se deixa afetar pelos latidos pois só vê o que
lhe interessa, e ruma rapidamente para a sua própria ordem das coisas.
Enrola-se em torno de si mesmo após ter dado duas voltas circulares ao espaço que
passou a habitar. Aconchega a cabeça por debaixo das patas, e tapa o focinho
com a cauda em movimentos muito lentos, cadenciados e precisos. Um relojoeiro
suíço seria incapaz de reproduzir a beleza e elegância do mecanismo interno que
acionou o movimento do animal. Sem lapsos, o felino ajustou o seu mundo à
humanidade que só ele entende e onde existe uma razão para tudo.
Não é por acaso que os
gatos também sonham, e não é por acaso que os cães sonham também. Seria um erro
julgar que não o fazem ou que neles não existe uma humanidade bem mais
grandiosa que a nossa. Sonham a existência do Infinito e a bondade de um
Criador, sonham sofismas sem preconceitos, sonham com distinção, sonham sonhos
burgueses, é isso que os caracteriza, pois nada há de mais burguês que uma
humanidade canina e felina a dormitar languidamente num virtuosismo sem igual.
Fico consolado ao
imaginar uma humanidade assim, consolo-me na sombra desta tarde e sento-me,
glorioso, a apanhar banhos de sol outonal onde mais nenhum felino veio descansar.
Lambo as patas com prazer, passo-as por detrás das orelhas e por sobre o
focinho, sinto-me mais do que o rei deste lugar, e uma glória ímpar protege os
pelos do meu corpo listrado.
- Miauuuuu!
Um cão passa a ladrar
lá longe, já meio indefinido. O vadio que é mais Imperador e Poeta que todos os
homens, volta a ladrar na sombra que o esconde junto à serrania onde mora.
- Ão Ão Ão!
As vidas humanas não
podem fazer parte desta equação, nesta humanidade canina e felina só os animais
podem manter a lei profunda que rege a lógica do lugar.
Se o macaco aqui
chegar, o melhor mesmo é assustá-lo com miados, urros e latidos, e esperar que
isso seja o suficiente para evitar que o símio possa evoluir até ser capaz de
reger a orquestra que se encarregará da sua própria destruição.
Só me voltarei a erguer
depois de uma sesta retemperadora. Depois, a lua grande elucidar-me-á e eu
saberei o que fazer a seguir…
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