quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

41 - A ESCRITA E A LEITURA SÃO O NOSSO SANGUE



O Mago observava velhos sonhadores que passeavam, oscilantes, do outro lado do passeio. Pratico a mesma tarefa solitária de vislumbrar os viajantes que atravessam espaços próximos de mim, estou inerte e atento, medito um pouco mais com os seus passos até desaparecerem da minha vista, até me saírem da atenção. Agora mesmo estou inerte a pensar tudo isto, devo a mim próprio a necessária dolência para construir este fio de raciocínio que se espalha como as nódoas da toalha que ficou por sacudir. Estas palavras são migalhas que enchem a gaveta da cómoda antiga, perdidas no fundo gasto pelos anos em que lhe deram uso e se esqueceram de a limpar. Pobres companheiras de versos banidos a tremeluzirem, omissas e desprezadas, heroínas sedutoras que talvez ninguém venha a descobrir.

Estou a ficar cada vez mais cansado e sem vitórias para saudar. Apetece-me fugir à pressa para um outro lugar onde pudesse acordar e escrever semanas inteiras sem parar. Continuadamente as palavras nasceriam sem travão e sonhariam mais alto do que as anteriores, seriam a tropa de um exército galopante em que milhões de soldados combateriam a asfixia da alma com uma literatura sedutora e enraivecida. As esquinas inexistentes onde habitam os inimigos da inércia derreter-se-iam à sua passagem e todos os mundos seriam acrescentados de felicidade porque lhes seria servido um sonho sem morte ou ilusões.

A felicidade existe porque o sonho existe e o abismo onde aprisionaram as dúvidas será por eles derrotado. Vejo o início dessa batalha com a mesma clareza com que as palavras surgem, relampejantes, na falsidade esbranquiçada da folha onde acontecemos. Inconsciente, afago e afogo-me nestas migalhas esquecidas que fitam a vida dos outros com estremecimento. A lógica desvanece-se com o nascimento das palavras, com o nascer do dia, com a manhã quente e morna deste dezembro assombroso de azuis intensos onde minhas pálpebras descansam. A oriente vejo raiar o dia pacífico.

Não entendo porque estamos aqui, duvido que esta paisagem agora fria nos pertença e nós a ela. Que vida é esta, que impérios do nada fundamentam a mesquinha realidade? Somos gloriosos piratas derrotados por Césares vingadores, os abismos da desgraça engoliram as galeras imperfeitas onde navegávamos e a promessa de existirmos num mundo melhor acabou ao raiar do dia. - Para Oriente! Avancemos em direção a Oriente! Tomemos de novo as rotas mareadas pelos nossos antepassados antes da completa e total estagnação do universo, sejamos outra vez heróis nada monótonos, antecipemo-nos aos adversários e inimigos, aos tiranos e a todos os outros seres humanos que, como nós, procurem desesperadamente por aventuras. Antes dos cérebros degenerarem e começarem a divagar verdades inconcebíveis, tiremos partido das paisagens azuis em que os contrastes perenes são, porventura, o que de mais sublime a mãe natureza imaginou.

Desci a mim e voltei a sentir o sono perpétuo que me sustenta o corpo.

Esqueci-me das palavras, a bebida ajudou-me a apressar esta sonolência constante que acabou por tomar conta da minha mão sonâmbula. Oferenda quase trágica, tão doce e perfumada, quente oferenda que me pesa nas pálpebras e me envolve o corpo numa bendita embriaguez.

Desceu a noite durante a viagem, não sei se por magia, não sei se por maldade, desceu e espera que mais uma vez a ela sobrevivamos. É uma esperança sempre renovada, despertar depois de adormecer, acordar a alma cansada, por debaixo de estrelas repousada, sobreviver ao nada, do nada e por nada, fitando as constelações esperançosas que nos alumiam a viagem e a lucidez.

Loucura, agonia, rituais, ideologias, a Humanidade posta perante fórmulas e lógicas e normativos estruturantes onde as liberdades deixaram de ter lugar ou posição. Excessos de linguagem, próteses ingénuas para contextos e referenciais grotescos, prefiro um bom zapping e viver sem nada saber desta decadência alucinada da espécie humana. - Para Oriente! Avancemos em direção a Oriente! Tomemos de novo as rotas mareadas pelos nossos antepassados antes da completa e total estagnação do universo, sejamos outra vez heróis nada monótonos, antecipemo-nos aos adversários e inimigos, aos tiranos e a todos os outros seres humanos que, como nós, procurem desesperadamente por aventuras. Antes dos cérebros degenerarem e começarem a divagar verdades inconcebíveis, tiremos partido das paisagens azuis em que os contrastes perenes são, porventura, o que de mais sublime a mãe natureza imaginou.

Sim, gritei uma outra vez, soprei aos sete ventos a mesma mensagem surreal e fiquei contente com o sangue derramado neste deserto ao qual pertenço, tão intenso e profundo e desconhecido.

Antes de voltar a adormecer, contemplo a estética performativa do capítulo que hoje cultivei. Sem o tomar por coisa séria, pois nada é sério, tudo é falacioso e meramente contemplativo, escuto o Mago Fernando a dizer-me que o devo fazer lendo bem alto para proporcionar a plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.

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