sábado, 10 de dezembro de 2016

40 - SOSSEGO



A calma com que derramarei este pensamento inútil ainda por acontecer talvez tenha o condão de me tranquilizar o espírito. Sinais de permanente frustração brotam incessantemente das minhas palavras, e ao descer a essa penumbra desassossegada da alma já não me sinto tão livre, antes encontrei matéria inconsciente de uma vacuidade que me pesava e que eu desconhecia. Com esforço talvez consiga voltar a captar nas coisas externas uma espécie de ternura de sentimento, um maior sossego e compaixão, terei de repetir com paciência essas tentativas, gloriosa compreensão de murmúrios menos neuróticos em recantos meus.
O Mago sabia que toda a vida humana é um movimento na penumbra e que somos apenas qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo. Relia-se e interrogava-se e sentia-se uma paisagem indistinta e confusa constantemente numa véspera de despertar. A sua voz tem sido minha nestas conversas dispersas em que nos deslocamos paralelos ao mundo, de bom grado. Falamos às escondidas um com o outro e com ninguém, vaidosos de nossos esquecimentos, mentirosos como poucos, pensadores voláteis, viajantes entre estações cósmicas suburbanas, meros bichos a estrebuchar estas imagens estúpidas de vidas paralelas, ainda mais estúpidas do que ela.
Repouso da única maneira que sei, escrevendo sensações novas, as coisas devem ser explicadas como nós as sentimos e eu ainda não sei que coisa é essa de conseguir dormir sossegado.
O esforço não está a resultar, tento acalmar-me, sentir de outra maneira a vida circundante, dormir menos, dormir mais, arranjar um modo menos convalescente de mudar a alma sem a mudar. Rapidamente o corpo muda, bem mais depressa que o desejado, e eu acalmo a fera confidente com um belo naco vermelho e branco de carne fresca acabada de cortar.
Fita-me a água do rio onde refrescamos as pernas com um olhar simbólico, uma água doce e espelhada devolve-nos a imagem dos rostos que não podemos ver, os nossos rostos velhos em corpos curvados a fitar o espelho fresco e cristalino onde descansamos.
Mago, qual a razão do teu entusiasmo? A tua expressão foi capaz de ser iluminada pelo desenho de um sorriso, tão contrário ao classicismo quase seráfico do teu traje escuro. Gosto da maneira como te sentaste a lavar os pés na água fresca deste ribeiro, hoje podemos ser sinceros um com o outro, talvez nunca mais tenhamos uma oportunidade como esta, julgo mesmo que um momento assim será irrepetível.
Amanhã seremos uma outra memória qualquer, coisa distinta de agora, esta é a minha convicção.
Não me posso entusiasmar, pois seria uma grosseria tamanha…
Sinto-me feliz, persuadi-me a exteriorizar esta emoção ao ver-te sentado, sorridente, junto ao ribeiro onde conversamos. Estou apenas a ser sincero, nada mais do que isso, um instante breve de sinceridade sossegada. Gosto destas conversas mudas que praticamos os dois, gosto delas mais do que tudo na vida.
É tão raro tu compareceres, tão raro, e eu cheguei àquele ponto em que acredito nesta felicidade sincera que estou a sentir.
Hoje é domingo, a luz deste ainda outono ilumina-te, e a tua proximidade é mais legítima que esta realidade mentirosa que atravessamos. Amo esta paisagem impossível, este encontro irrealizável, este devaneio sincero em que acredito. Mago, porque razão amamos paisagens impossíveis e áreas desertas onde nunca estaremos?
A rua lá fora segue parada, sem gente na rua. As pessoas apinham-se e acotovelam-se nas lojas de espaços titânicos preparados para combates ferozes de movimentos incertos e sonâmbulos. Correm para prateleiras em permanente tensão consumista, nervosos seres metafísicos, navegadores flutuantes de aspeto pálido e automático, marcham sobre o impossível artigo e vencem os restantes inimigos com armas carregadas com cupões de descontos. Estão inebriados com tanto brilho e glamour, com odores a incenso e mirra e infinitas sonoridades natalícias tão iguais ao que sempre foram. A anestesia resulta e os vagabundos roçam-se pelo meio de pijamas cor-de-rosa com orelhas de ursos, almoçam apressados e debruçam-se sobre brinquedos plastificados de proveniência contrária à da felicidade.
Sossego.
Nada disto é verdadeiro.
Sossego, dormi abandonado esta tarde de domingo e afastei-me dela mentalmente, de olhos abertos, pesados como um universo inteiro.
Sentado, larguei-me nas águas desse ribeiro onde conversámos e já não te vi. Era inevitável. Os intervalos em que te posso encontrar são cada vez mais curtos e ilusórios. A realidade da vida que sou é esta brisa que me envolve ao fitar o riacho onde não estamos.
São bem mais inteligentes os outros que vivem vidas monótonas e delas são capazes de retirar uma contente felicidade. Não existe razão nenhuma para esconderem o que verdadeiramente possuem.
O Mago sabia que cada homem é só quem é, e o erro central de toda a imaginação literária é supormos que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas também esta será uma verdade inexistente, porque a verdade não está com ninguém, apenas a vida monótona de cada um está com quem a sente e dela retira os seus gratos privilégios.
O mais grato serão os sonhos inúteis que consigo visionar mesmo no meio do meu trabalho, escapo para onde nos podemos reunir, à mesa do mesmo café de sempre, hoje, ontem, quando desejares, e conversamos nessa ilha longínqua em que nada nos pertence, alheios à sala de aula, aos corredores, ao escritório, às ruas e avenidas que percorremos para lá chegar, alheios a todos os oceanos, e onde gozamos, em plenitude, as extraordinárias visões interiores destas conversas inexistentes.
Este era todo o sossego de que hoje necessitava para sobreviver.
Agora resta-me voltar a colocar a espada na bainha, descer à vida e reconhecer a minha derrota na igual proporção das palavras que nasceram nas margens paradisíacas deste riacho onde nos encontrámos para conversar.

Sem comentários:

Enviar um comentário