A calma com que
derramarei este pensamento inútil ainda por acontecer talvez tenha o condão de
me tranquilizar o espírito. Sinais de permanente frustração brotam
incessantemente das minhas palavras, e ao descer a essa penumbra desassossegada
da alma já não me sinto tão livre, antes encontrei matéria inconsciente de uma
vacuidade que me pesava e que eu desconhecia. Com esforço talvez consiga voltar
a captar nas coisas externas uma espécie de ternura de sentimento, um maior
sossego e compaixão, terei de repetir com paciência essas tentativas, gloriosa
compreensão de murmúrios menos neuróticos em recantos meus.
O Mago sabia que toda a
vida humana é um movimento na penumbra e que somos apenas qualquer coisa que se
passa no intervalo de um espetáculo. Relia-se e interrogava-se e sentia-se uma
paisagem indistinta e confusa constantemente numa véspera de despertar. A sua
voz tem sido minha nestas conversas dispersas em que nos deslocamos paralelos
ao mundo, de bom grado. Falamos às escondidas um com o outro e com ninguém,
vaidosos de nossos esquecimentos, mentirosos como poucos, pensadores voláteis,
viajantes entre estações cósmicas suburbanas, meros bichos a estrebuchar estas
imagens estúpidas de vidas paralelas, ainda mais estúpidas do que ela.
Repouso da única
maneira que sei, escrevendo sensações novas, as coisas devem ser explicadas
como nós as sentimos e eu ainda não sei que coisa é essa de conseguir dormir
sossegado.
O esforço não está a
resultar, tento acalmar-me, sentir de outra maneira a vida circundante, dormir
menos, dormir mais, arranjar um modo menos convalescente de mudar a alma sem a
mudar. Rapidamente o corpo muda, bem mais depressa que o desejado, e eu acalmo
a fera confidente com um belo naco vermelho e branco de carne fresca acabada de
cortar.
Fita-me a água do rio
onde refrescamos as pernas com um olhar simbólico, uma água doce e espelhada
devolve-nos a imagem dos rostos que não podemos ver, os nossos rostos velhos em
corpos curvados a fitar o espelho fresco e cristalino onde descansamos.
Mago, qual a razão do
teu entusiasmo? A tua expressão foi capaz de ser iluminada pelo desenho de um
sorriso, tão contrário ao classicismo quase seráfico do teu traje escuro. Gosto
da maneira como te sentaste a lavar os pés na água fresca deste ribeiro, hoje
podemos ser sinceros um com o outro, talvez nunca mais tenhamos uma
oportunidade como esta, julgo mesmo que um momento assim será irrepetível.
Amanhã seremos uma
outra memória qualquer, coisa distinta de agora, esta é a minha convicção.
Não me posso
entusiasmar, pois seria uma grosseria tamanha…
Sinto-me feliz,
persuadi-me a exteriorizar esta emoção ao ver-te sentado, sorridente, junto ao
ribeiro onde conversamos. Estou apenas a ser sincero, nada mais do que isso, um
instante breve de sinceridade sossegada. Gosto destas conversas mudas que
praticamos os dois, gosto delas mais do que tudo na vida.
É tão raro tu
compareceres, tão raro, e eu cheguei àquele ponto em que acredito nesta felicidade
sincera que estou a sentir.
Hoje é domingo, a luz
deste ainda outono ilumina-te, e a tua proximidade é mais legítima que esta
realidade mentirosa que atravessamos. Amo esta paisagem impossível, este
encontro irrealizável, este devaneio sincero em que acredito. Mago, porque
razão amamos paisagens impossíveis e áreas desertas onde nunca estaremos?
A rua lá fora segue
parada, sem gente na rua. As pessoas apinham-se e acotovelam-se nas lojas de
espaços titânicos preparados para combates ferozes de movimentos incertos e
sonâmbulos. Correm para prateleiras em permanente tensão consumista, nervosos
seres metafísicos, navegadores flutuantes de aspeto pálido e automático,
marcham sobre o impossível artigo e vencem os restantes inimigos com armas
carregadas com cupões de descontos. Estão inebriados com tanto brilho e glamour, com odores a incenso e mirra e
infinitas sonoridades natalícias tão iguais ao que sempre foram. A anestesia
resulta e os vagabundos roçam-se pelo meio de pijamas cor-de-rosa com orelhas
de ursos, almoçam apressados e debruçam-se sobre brinquedos plastificados de
proveniência contrária à da felicidade.
Sossego.
Nada disto é
verdadeiro.
Sossego, dormi
abandonado esta tarde de domingo e afastei-me dela mentalmente, de olhos
abertos, pesados como um universo inteiro.
Sentado, larguei-me nas
águas desse ribeiro onde conversámos e já não te vi. Era inevitável. Os
intervalos em que te posso encontrar são cada vez mais curtos e ilusórios. A
realidade da vida que sou é esta brisa que me envolve ao fitar o riacho onde
não estamos.
São bem mais inteligentes
os outros que vivem vidas monótonas e delas são capazes de retirar uma contente
felicidade. Não existe razão nenhuma para esconderem o que verdadeiramente
possuem.
O Mago sabia que cada
homem é só quem é, e o erro central de toda a imaginação literária é supormos
que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas também esta será uma
verdade inexistente, porque a verdade não está com ninguém, apenas a vida
monótona de cada um está com quem a sente e dela retira os seus gratos
privilégios.
O mais grato serão os
sonhos inúteis que consigo visionar mesmo no meio do meu trabalho, escapo para
onde nos podemos reunir, à mesa do mesmo café de sempre, hoje, ontem, quando
desejares, e conversamos nessa ilha longínqua em que nada nos pertence, alheios
à sala de aula, aos corredores, ao escritório, às ruas e avenidas que
percorremos para lá chegar, alheios a todos os oceanos, e onde gozamos, em
plenitude, as extraordinárias visões interiores destas conversas inexistentes.
Este era todo o sossego
de que hoje necessitava para sobreviver.
Agora resta-me voltar a
colocar a espada na bainha, descer à vida e reconhecer a minha derrota na igual
proporção das palavras que nasceram nas margens paradisíacas deste riacho onde
nos encontrámos para conversar.
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