quinta-feira, 2 de março de 2017

53 - A BEIRA DA ESTRADA ONDE MORRI



As palavras livres deveriam ser capazes de corromper as leis rígidas que as oprimem, pairar sem pensar em ritmos poéticos, em cores, em formas, em estéticas de modas ocasionais que as transfiguram em coisa sem graça, sem jeito, em coisas indecisas menos nobres, bem mais servis. Eternas são as palavras, ainda mais eternas são as palavras livres, são de uma imortalidade distinta e incomparável, nelas se explicam as engenharias de todos os sistemas e a perfeição contida em todas as coisas visíveis e invisíveis. As ideias dos homens que foram e dos que serão, os luares esplendorosos e o nascimento de estrelas, de galáxias e de universos inteiros, os vários conceitos de infinito, o choro de uma criança, o dia primeiro em que o rei dos reis viveu, o sentimento todo deste Mago que me enche as manhãs, as tardes e as noites com tantas palavras que ainda não sei como nascem, mas das quais já sinto saudades.

Que poderosas são as palavras livres, tão difíceis de encontrar…

Soltas de todas as amarras, invadem os espaços perdidos entre os tempos de todas as eras, pairam como um manto régio que tudo cobre e onde pertencemos, descritos por elas com uma clareza desconcertante.

Simples é a compreensão de todos os fenómenos, as palavras livres descrevem em sonhos os percursos exatamente como os sentimos, demasiado familiares, quantas vezes dolorosos e penosos, tantas vezes desassossegados. Leio estes desejos porque os sinto e assim os descrevo, e escrevo… tudo o que vejo, o que sonho, o que não sei se existe dentro e fora de mim, em palavras de outros, principalmente nas palavras desse outro com quem estes dias me habituei a conversar, o Mago, o meu Mago, o Mago de todos e de ninguém, o maior de todos os pensadores, demasiado familiar para me causar incómodo ao vê-lo chegar em forma de fantasma sonolento, com o seu pequeno bigode mal aparado, hoje com este aspeto de quem passou a noite ao relento a tentar explicar-me o inexplicável, qual a razão de ainda estarmos aqui e não em qualquer outro lugar onde deveríamos acontecer.

Mistério é a clareza com que ele se expressa e estreita o espaço infinito que nos separa, mistério é a familiaridade deste processo e a surpresa que me provocam as suas revelações. A meio da noite acordei sobressaltado por mais um dos seus esclarecimentos, e li em imagens impossíveis aquilo que sei não ter acontecido, mas que aconteceu. Colhi da leitura dessas palavras onde pertenci novidades avassaladoras acerca da história de nossas vidas. Acordei alagado em suor a escutar vozes que já não existem, em espaços que já não são, mas onde vivi. Palavras obscuras seguiram-me pelo corredor até desaparecerem, li-as e fiquei liberto do ser pouco corajoso que as escutou, em primeira mão, pela voz rouca e compassada do Mago que esta madrugada me visitou. A liberdade das palavras dos sonhos é feita de uma objetividade que pesa mais do que a própria realidade. Caminhei jovem nessa estrada onde o inconcebível ocorreu e acordei hoje, de madrugada, vindo diretamente de um espaço e do tempo onde a tragédia aconteceu. Confesso ter ficado sem voz e quase sem pinga de sangue. Perdi a noção do externo de mim, as sombras no teto do quarto e no chão quieto acabaram de vez com a paz do meu descanso, mas tinha de ser assim. Li as palavras do Mago naquela sua voz muda e rouca, consegui escutá-lo e li-o desta maneira inquieta que tanto me perturbou. Morremos todos nesse trágico acidente! Passados todos estes anos a criança que voou por sobre a estrada e pelos céus do abismo que a viatura abraçou, acordou nos lençóis de agora, a mesma pessoa desse dia mas com os átomos de hoje, exatamente como fui, exatamente como sou, revelação lida como um trecho de uma prosa rebuscada dessas coisas demasiado familiares, demasiado palavras conhecidas, uma solidez escura de coisa perpétua e nunca acabada que de quando em vez se mostra, sem aviso prévio, nestes clarões construídos por palavras invisíveis declamadas pela voz do Mago poeta.

Fico exausto com estas revelações.

Leio-as, adquiro a objetividade possível e tento voltar a adormecer.

Pesa-me a clareza deste mundo e dos seus estranhos caminhos.

Grandes são os mistérios contidos neste manto régio sagrado que pisamos e contemplamos. Se leio, é porque sou, se te escuto, é porque estou, se escrevo, é porque necessito das palavras para sobreviver, para ser e para estar, para tentar ser livre e ler como quem passa e se sente suficientemente nobre para ver e dormir inquieto até voltar a acordar, de novo, num outro tempo e num outro leito. Serei o mesmo, mas já outro, composto por átomos desconhecidos, mas que são já, também, essa outra parte de mim.

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