As palavras livres
deveriam ser capazes de corromper as leis rígidas que as oprimem, pairar sem
pensar em ritmos poéticos, em cores, em formas, em estéticas de modas
ocasionais que as transfiguram em coisa sem graça, sem jeito, em coisas
indecisas menos nobres, bem mais servis. Eternas são as palavras, ainda mais
eternas são as palavras livres, são de uma imortalidade distinta e incomparável,
nelas se explicam as engenharias de todos os sistemas e a perfeição contida em
todas as coisas visíveis e invisíveis. As ideias dos homens que foram e dos que
serão, os luares esplendorosos e o nascimento de estrelas, de galáxias e de
universos inteiros, os vários conceitos de infinito, o choro de uma criança, o
dia primeiro em que o rei dos reis viveu, o sentimento todo deste Mago que me
enche as manhãs, as tardes e as noites com tantas palavras que ainda não sei
como nascem, mas das quais já sinto saudades.
Que poderosas são as
palavras livres, tão difíceis de encontrar…
Soltas de todas as
amarras, invadem os espaços perdidos entre os tempos de todas as eras, pairam
como um manto régio que tudo cobre e onde pertencemos, descritos por elas com
uma clareza desconcertante.
Simples é a compreensão
de todos os fenómenos, as palavras livres descrevem em sonhos os percursos
exatamente como os sentimos, demasiado familiares, quantas vezes dolorosos e
penosos, tantas vezes desassossegados. Leio estes desejos porque os sinto e
assim os descrevo, e escrevo… tudo o que vejo, o que sonho, o que não sei se
existe dentro e fora de mim, em palavras de outros, principalmente nas palavras
desse outro com quem estes dias me habituei a conversar, o Mago, o meu Mago, o
Mago de todos e de ninguém, o maior de todos os pensadores, demasiado familiar
para me causar incómodo ao vê-lo chegar em forma de fantasma sonolento, com o
seu pequeno bigode mal aparado, hoje com este aspeto de quem passou a noite ao relento
a tentar explicar-me o inexplicável, qual a razão de ainda estarmos aqui e não
em qualquer outro lugar onde deveríamos acontecer.
Mistério é a clareza com
que ele se expressa e estreita o espaço infinito que nos separa, mistério é a
familiaridade deste processo e a surpresa que me provocam as suas revelações. A
meio da noite acordei sobressaltado por mais um dos seus esclarecimentos, e li
em imagens impossíveis aquilo que sei não ter acontecido, mas que aconteceu.
Colhi da leitura dessas palavras onde pertenci novidades avassaladoras acerca
da história de nossas vidas. Acordei alagado em suor a escutar vozes que já não
existem, em espaços que já não são, mas onde vivi. Palavras obscuras
seguiram-me pelo corredor até desaparecerem, li-as e fiquei liberto do ser
pouco corajoso que as escutou, em primeira mão, pela voz rouca e compassada do
Mago que esta madrugada me visitou. A liberdade das palavras dos sonhos é feita
de uma objetividade que pesa mais do que a própria realidade. Caminhei jovem
nessa estrada onde o inconcebível ocorreu e acordei hoje, de madrugada, vindo
diretamente de um espaço e do tempo onde a tragédia aconteceu. Confesso ter
ficado sem voz e quase sem pinga de sangue. Perdi a noção do externo de mim, as
sombras no teto do quarto e no chão quieto acabaram de vez com a paz do meu
descanso, mas tinha de ser assim. Li as palavras do Mago naquela sua voz muda e
rouca, consegui escutá-lo e li-o desta maneira inquieta que tanto me perturbou.
Morremos todos nesse trágico acidente! Passados todos estes anos a criança que
voou por sobre a estrada e pelos céus do abismo que a viatura abraçou, acordou
nos lençóis de agora, a mesma pessoa desse dia mas com os átomos de hoje,
exatamente como fui, exatamente como sou, revelação lida como um trecho de uma
prosa rebuscada dessas coisas demasiado familiares, demasiado palavras
conhecidas, uma solidez escura de coisa perpétua e nunca acabada que de quando
em vez se mostra, sem aviso prévio, nestes clarões construídos por palavras
invisíveis declamadas pela voz do Mago poeta.
Fico exausto com estas
revelações.
Leio-as, adquiro a
objetividade possível e tento voltar a adormecer.
Pesa-me a clareza deste
mundo e dos seus estranhos caminhos.
Grandes são os mistérios
contidos neste manto régio sagrado que pisamos e contemplamos. Se leio, é
porque sou, se te escuto, é porque estou, se escrevo, é porque necessito das
palavras para sobreviver, para ser e para estar, para tentar ser livre e ler
como quem passa e se sente suficientemente nobre para ver e dormir inquieto até
voltar a acordar, de novo, num outro tempo e num outro leito. Serei o mesmo,
mas já outro, composto por átomos desconhecidos, mas que são já, também, essa
outra parte de mim.
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