quarta-feira, 12 de outubro de 2016

21 - DESERTO



Os reflexos quebradiços sobem as dunas e descem pelo lado da miragem imperfeita da minha inquietude. Perdi tudo num repente, e o príncipe que outrora fui é agora a luz trémula do cemitério de túmulos esquecidos em que se transformou este deserto. Falsa vida, ou falsa realidade, sorriso antigo jamais recuperado, e o segredo dessa esperança maldita em que ainda acredito é o sol que me faz falta, é a paz impossível que talvez nunca venha a acontecer. As neblinas estão dispersas ao longo do vazio imenso, escondidas pela névoa acastanhada e ocre deste mar morto que me tolda o espírito. É o deserto que me devolve a paz onde gosto de sofrer, o outono abstrato recua perante os tons imperiais deste imenso céu verde e azul, nele a visão não se extingue, cega de saudade e mágoa por nunca antes o ter visitado, uma saudade fina, tão fina como a lâmina aguçada do punhal que me trespassa o peito. Tudo isto é uma visão que rapidamente irei esquecer, e a nostalgia nasce no momento em que a esqueço e desmaio num poço de dunas. Sigo agora menos inteiro, menos inteiro do que ontem, poente e nascente sem existir, sem saber se desejo esta vida ou esta morte ou outra que a venha substituir, bem mais inteira e diferente do que a que descrevo, recortada por nuvens escuras que trazem a água fria ao meu deserto. Infinito. A tarde finda, está aqui comigo e folheia-me à procura das palavras que não descubro em mim. A tarde no deserto é o remédio todo que necessito, e também as conversas inventadas dos outros. Os seus ecos caem aos pedaços, bordados em sedas várias, com descrições excêntricas da vida desses vagabundos irreais que não conheço. A tarde no deserto é um tédio que me constipa, vago, um tédio vago que necessito para resistir.
O meu deserto deixou de ser viscoso no princípio do capítulo, ainda a primeira palavra não me pertencia, ainda os reflexos quebradiços não imaginavam sequer ser possível subir as dunas, minhas amantes, minhas amigas. Vagueei nu, lentamente, ao longo da escalada, gozei como criança a liberdade acontecida, era eu um ser quase alegórico, uma personagem vagamente parecida com um homem, apenas porque um homem desnudado jamais percorreria com tanta rapidez as areias movediças e viscosas de um deserto acabado de criar. A vida incerta e ilógica cai, aleatória, do teto do universo, é baba de poema recém-nascido, depressa será livro concluído, nunca livro terminado… muito menos neste lugar absurdo e distante onde os reis do fingimento acabaram sepultados entre nós e este desmedido nada gramatical que nos separa. Corro em torno de mim, reparo nas planícies de que sou construído, sou esta coisa acidentada e maliciosa, nem alta nem baixa, nem gorda nem magra, um artifício sem título de nobreza, subo por mim acima até o vale glorificado estar tão distante como tu, meu amor, minha única e última recordação. Deixei-me levar até aqui, abriguei-me dos ventos que levantaram as tempestades laranjas que cobriram quem sou, estaríamos melhor debaixo dessa espuma de pedras minúsculas onde as distâncias não fazem qualquer diferença. Nas alturas os músculos ficam instáveis e gostam de nos desobedecer. Sofro mais no alto destas dunas afortunadas, o meu palácio será mais belo se o meu sofrimento permitir olhar de cima todos os vales e desertos que constituem a minha solidão.

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