segunda-feira, 17 de outubro de 2016

23 - ESSE VÍRUS CHAMADO AMOR



A descrença foi globalmente adotada como uma das principais atitudes da espécie humana, o que tem vindo a criar individualidades informes e amorfas. A ideia fundamental é a de gerar espíritos maleáveis e desalentados, decalcados de um modelo argiloso antigo e decadente onde a lucidez e a objetividade sejam banidas do sistema. Foram criados milhares de milhões de seres parasitários que neste preciso instante invadem as nossas consciências deformando-nos a alma e as emoções. Este contínuo devaneio perpetuar-se-á até ao limite, até que se derrame a última gota de lucidez do último de nós. As cascas de nossos espíritos ficarão espalhadas ao relento. A ignóbil e requintada operação desdobra-se em várias fases, e adota diversos estratagemas sempre orientados para o mesmo fim. Os canais biológicos foram classificados, os agentes ambientais foram unificados e a fisionomia dos vírus e das bactérias foi alterada para se adaptarem, com rapidez, a todas as realidades. Invadem os sonhos e as consciências e as almas, num repente sinistro, e nós sem pensar e sem querer, sem coração, sem sintonia ou brilho ou rastro do somatório do que já fomos… apenas vertigem ilusória, um buraco incompleto rasgado por raciocínios aleatórios a boiar no vazio absoluto.
Caímos sem jamais reencarnar.
Vácuo
… oceano infinito
rastros luminosos … a boiar no vazio absoluto.
… Mago? … és tu, meu amigo? Preso nesta queda?
… és o centro desta geometria que faz sorrir o inferno?
A maleita espalha-se e a humanidade só tem diabos sorridentes a flutuar, como nós, nesta amálgama rodopiante onde não existem centros.
Ninguém pensa, ninguém sente, nada mais há para conhecer, as almas morrem devagar, demasiado cedo, insensíveis a tudo menos à dor. Romeu matou-se, Julieta suicidou-se após o beijo final ao cadáver do amante para sentir o amor de todas as maneiras, e o poeta ímpar e sensível contou a história ao estilo dessa época, que ainda é a época de agora. A esperança cedo é derrotada, e depois nada mais resta senão um fingimento tático que nos permite montar a cavalo estas nuvens negras do desalento e da fome. Amemo-nos, o destino de todos é a reposição do amor sem fingimento, reaprender a usar todas as sensações, todos os ideais, espreguiçar os tentáculos até ao limite das formas possíveis e impossíveis da matéria desse corpo moldável em que nos transformámos, e só com o amor nos salvaremos.
O Mago riu-se, e gritou, ao longe: - “Sentir é uma maçada”…
Ele adora contrariar as teses de quem é plebeu e inocente, e eu caí em mim. Sou verdadeiramente estúpido, o vírus não pode ser derrotado, é tarde demais. Esqueça-se essa palavra, omita-se a coisa viscosa com trejeitos de sensibilidade. A essência do amor é bem diferente das conversas que alimentam estas páginas vazias. Ai de mim, ai de nós, ai dos sonhos que não logramos concretizar. O universo inteiro destruído por uma pitada de sal e pimenta! Matou-se o amor, aniquilou-se a simples possibilidade da sua existência, desagregou-se o sentimento mais puro com esta descrença endémica, este parasita da não sobrevivência.
“Sentir é uma maçada” – devolveu-me o Mago a sua frase antes do capítulo acabar. Hoje foi doloroso recordá-lo pois ele criou em mim um vazio difícil de suportar.
O Mago derrotou com extrema facilidade a essência do meu poema shakespeariano.

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