sábado, 22 de outubro de 2016

25 - SOLIDÃO



Habituei-me às vezes que larguei o corpo pelas estradas secundárias e menos emocionadas da vida, mais entre sonhos, assim mais anteriores às emoções decalcadas desta lógica imaterial onde tudo acontece. Desdobrei-me pelos vários caminhos e atalhos que encontrei, gostei de todos, percorri-os com gosto e fi-los coisas minhas. Dispersei-me ao mesmo tempo que cada passo dado me tornou mais uno e capaz, menos dolente e inquieto. Eu estou aqui e deixei de ver. A operação foi dolorosa e tive de aprender a viver, consciente e inconsciente, enquanto o cérebro me pedia para descansar. O instinto oculto de onde reencarnei trouxe-me até este dia tranquilo, mais longo que o normal, um dia sem raciocínio nenhum e de uma emoção tremenda. A cabeça pesa-me menos do que ontem, mais que amanhã, e a dor que nela sinto concentra-se atrás, junto à protuberância occipital externa, onde as metáforas costumam brotar e ganhar uma condição tão falsa quanto humana. Este estado humano-falso é contraditório e muito difícil de decifrar. As frases que escrevo são criaturas mentirosas que só me fazem visualizar o inconcebível. Demoram a nascer figuras, passam fome e sede, e magoam só porque surgem de mim e eu sou capaz de as visualizar, mesmo se as semanas em que isso não acontece derrotam a parte insubmissa de quem julgo ser. A recompensa é ter aprendido a sonhar sem necessitar de fechar os olhos. Dessa maneira foram construídos episódios inteiros em cada sensação de eu poder encontrar pedaços de mim nesses pedaços. A voz de outros relatada num mar de palavras marinheiras saídas deste pátio inacabado ao qual ainda pertenço. Assim nascem as palavras e logo cresce a saudade dessa impressão criada neste outrora vazio. O Mago dizia viver de impressões que não lhe pertenciam, e sentia-se um perdulário de renúncias. Destruiu-se para criar, foi a cena viva por onde passaram os atores de várias peças... Eu entendo a ruína desse seu desassossego, e de como viveu uma vida inteira construída de desesperança e com fé que as suas palavras transportassem os ventos da mudança. Hoje, neste dia maior do que os outros, dormi para lá do razoável. O descanso fez-me bem. Depois de tanto silêncio, fiquei sem o vestígio desse sonho na consciência. Escutei o ruído da estagnação tardia até acordar e deu-se em mim uma nova inoperância. As emoções pararam até ter deixado de escrever. Dormir é essencial para recuperar o amor e as palavras. Terei de mergulhar na minha inteira nudez até que o somatório dos instantes de ausência ajude a cobrir o meu peito. Do meu occipital renascerá uma nova geração de palavras orgânicas, ocasionais, fiéis a uma não monotonia incerta, e isso terá de acontecer antes do século terminar. Tenho sono, apesar da vida andar depressa demais. Tenho ainda mais sono do que no dia em que a hora andou para trás e nós regressámos a um passado inventado. Assisti ao dia mais longo, e eu a dormir nele mais uma hora esquecida. Sucede-me com frequência maldita assistir a esta viagem no tempo, todavia tão diferente, tão monótona e tão curta.
- Aqui estou!
O que falta para atingir as palavras do meu passado é só não fazer nada e aguardar que nasçam enquanto sonho descalço na mesma cama disfarçada onde ontem me deitei.
- Estou cansado porque fiquei quieto. Porque não agi. Um cansaço que só me dá mais vontade de dormir.
A sala remexida como um livro antigo de folhas gastas onde os meus olhos descansam e eu me sinto e conheço. Pousei a monotonia inteira nestas palavras recém-nascidas e já sou um outro personagem da minha história. Lembrei-me de descansar, sou onde estive e vivi, sou onde escrevi as primeiras frases antes de ter sono, e estas mais recentes em que me transformei.
Beijo-te em memória com uma nitidez provinciana que me salga a língua de paixão. Aproximei-te de ti, dos teus sabores inteiros, as nossas duas vidas afastadas e a chama quente a correr dentro de milhões de memórias de sonhos especulativos. Conheço-me melhor quando te beijo, mesmo que não seja na boca, todos os nossos beijos ficam marcados na alma com uma nitidez inebriante que eu relembro, e neles revejo a minha infância igual às palavras novas que descem por esta página onde nunca moraram. No teu rosto desvendo a nossa existência apaixonada. Despimo-nos para imaginarmos como seria se os nossos corpos quentes naturais se tocassem, tão sagrados e azuis…
Torturamo-nos, sem razão aparente, em busca dessa frágil felicidade, e ao mesmo tempo perdemos o que nunca fomos nesta cela distante que nos distancia e nos une.

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