Habituei-me às vezes que larguei o corpo pelas
estradas secundárias e menos emocionadas da vida, mais entre sonhos, assim mais
anteriores às emoções decalcadas desta lógica imaterial onde tudo acontece.
Desdobrei-me pelos vários caminhos e atalhos que encontrei, gostei de todos,
percorri-os com gosto e fi-los coisas minhas. Dispersei-me ao mesmo tempo que
cada passo dado me tornou mais uno e capaz, menos dolente e inquieto. Eu estou
aqui e deixei de ver. A operação foi dolorosa e tive de aprender a viver,
consciente e inconsciente, enquanto o cérebro me pedia para descansar. O instinto
oculto de onde reencarnei trouxe-me até este dia tranquilo, mais longo que o
normal, um dia sem raciocínio nenhum e de uma emoção tremenda. A cabeça pesa-me
menos do que ontem, mais que amanhã, e a dor que nela sinto concentra-se atrás,
junto à protuberância occipital externa, onde as metáforas costumam brotar e
ganhar uma condição tão falsa quanto humana. Este estado humano-falso é
contraditório e muito difícil de decifrar. As frases que escrevo são criaturas
mentirosas que só me fazem visualizar o inconcebível. Demoram a nascer figuras,
passam fome e sede, e magoam só porque surgem de mim e eu sou capaz de as
visualizar, mesmo se as semanas em que isso não acontece derrotam a parte
insubmissa de quem julgo ser. A recompensa é ter aprendido a sonhar sem
necessitar de fechar os olhos. Dessa maneira foram construídos episódios
inteiros em cada sensação de eu poder encontrar pedaços de mim nesses pedaços. A
voz de outros relatada num mar de palavras marinheiras saídas deste pátio inacabado
ao qual ainda pertenço. Assim nascem as palavras e logo cresce a saudade dessa
impressão criada neste outrora vazio. O Mago dizia viver de impressões que não
lhe pertenciam, e sentia-se um perdulário de renúncias. Destruiu-se para criar,
foi a cena viva por onde passaram os atores de várias peças... Eu entendo a
ruína desse seu desassossego, e de como viveu uma vida inteira construída de
desesperança e com fé que as suas palavras transportassem os ventos da mudança.
Hoje, neste dia maior do que os outros, dormi para lá do razoável. O descanso
fez-me bem. Depois de tanto silêncio, fiquei sem o vestígio desse sonho na
consciência. Escutei o ruído da estagnação tardia até acordar e deu-se em mim
uma nova inoperância. As emoções pararam até ter deixado de escrever. Dormir é
essencial para recuperar o amor e as palavras. Terei de mergulhar na minha
inteira nudez até que o somatório dos instantes de ausência ajude a cobrir o
meu peito. Do meu occipital renascerá uma nova geração de palavras orgânicas,
ocasionais, fiéis a uma não monotonia incerta, e isso terá de acontecer antes
do século terminar. Tenho sono, apesar da vida andar depressa demais. Tenho
ainda mais sono do que no dia em que a hora andou para trás e nós regressámos a
um passado inventado. Assisti ao dia mais longo, e eu a dormir nele mais uma
hora esquecida. Sucede-me com frequência maldita assistir a esta viagem no
tempo, todavia tão diferente, tão monótona e tão curta.
- Aqui estou!
O que falta para atingir as palavras do meu passado é
só não fazer nada e aguardar que nasçam enquanto sonho descalço na mesma cama disfarçada
onde ontem me deitei.
- Estou cansado porque fiquei quieto. Porque não agi.
Um cansaço que só me dá mais vontade de dormir.
A sala remexida como um livro antigo de folhas gastas
onde os meus olhos descansam e eu me sinto e conheço. Pousei a monotonia
inteira nestas palavras recém-nascidas e já sou um outro personagem da minha
história. Lembrei-me de descansar, sou onde estive e vivi, sou onde escrevi as
primeiras frases antes de ter sono, e estas mais recentes em que me
transformei.
Beijo-te em memória com uma nitidez provinciana que me salga a língua de paixão. Aproximei-te de ti, dos teus sabores inteiros, as nossas duas vidas afastadas e a chama quente a correr dentro de milhões de memórias de sonhos especulativos. Conheço-me melhor quando te beijo, mesmo que não seja na boca, todos os nossos beijos ficam marcados na alma com uma nitidez inebriante que eu relembro, e neles revejo a minha infância igual às palavras novas que descem por esta página onde nunca moraram. No teu rosto desvendo a nossa existência apaixonada. Despimo-nos para imaginarmos como seria se os nossos corpos quentes naturais se tocassem, tão sagrados e azuis…
Beijo-te em memória com uma nitidez provinciana que me salga a língua de paixão. Aproximei-te de ti, dos teus sabores inteiros, as nossas duas vidas afastadas e a chama quente a correr dentro de milhões de memórias de sonhos especulativos. Conheço-me melhor quando te beijo, mesmo que não seja na boca, todos os nossos beijos ficam marcados na alma com uma nitidez inebriante que eu relembro, e neles revejo a minha infância igual às palavras novas que descem por esta página onde nunca moraram. No teu rosto desvendo a nossa existência apaixonada. Despimo-nos para imaginarmos como seria se os nossos corpos quentes naturais se tocassem, tão sagrados e azuis…
Torturamo-nos, sem razão aparente, em busca dessa
frágil felicidade, e ao mesmo tempo perdemos o que nunca fomos nesta cela distante
que nos distancia e nos une.
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