De que palavra é hoje
feito o meu ribeiro? A água reflete o brilho da vida, e eu pensei que esse
espelho límpido era construído de chuvas de cristal gloriosas e multicolores.
Os movimentos fluídos do riacho bailarino construíram em mim uma glória
momentânea, fútil e incerta, e os meus olhos atentos vislumbraram aquela que
foi a última dúvida do meu dia. Pratiquei movimentos incertos na tentativa de lhe
arrancar pedaços de cristal sem me cortar, inclinei-me de tal forma que os
músculos perderam firmeza e rosnaram antes do sol nascer. A queda foi
inevitável, espetei-me em pedaços cristalinos de água vítrea que me arrancaram
a pele e os ossos, e quase me cegaram. Adorei banhar-me no meu ribeiro, de
manhãzinha, à hora em que as pessoas singulares ainda dormem e eu salto da cama
e tudo se explica. De repente estava sozinho no mundo sem saber como tinha ali
chegado. A cama não era mais o meu castelo, o ar passava por mim com a
temperatura de uma madrugada de verão até que molhei os pés e os tornozelos e a
pele desapareceu num enorme truque de magia, e a tíbia e o perónio riram-se de
mim ao sol recém-nascido. Com as pernas despedaçadas, a luz do novo dia
iluminou o meu mergulhar e a distância entre as coisas ficou mais pequena, o
universo encolheu, não mais se expandiu nem se replicou, tudo fez para me
orientar, e eu evaporei-me espetacularmente e aqui estou. Reencontrei-me nesta
hora tardia para dar conta do acontecido, uma confusão mais imaginada do que
verdadeira, outro pequeno e solitário exercício de desregulação quase poética.
E quem a isto assiste sou apenas eu… agora mais acordado e já curado das
feridas e maleitas sucedidas ao amanhecer. Pensei que me tinha evaporado para
um cenário confuso onde por mil vezes me apagaram a memória. Fui atingido na
cara por um soco violentíssimo e despertei, por pouco tempo, apenas o instante
destas palavras atingirem o parágrafo que aqui germinou. O ribeiro de águas de
cristal trouxe-me até este lugar onde agora escrevo, mas já é noite outra vez,
e eu ainda estou acordado neste sono alheio que tantas vezes reconheço.
Lembro-me de frases perdidas, de diálogos e de espaços visitados, outros por
visitar, uma balbúrdia de trajetos e viagens espantosas, um ribeiro inteiro…
feito de uma palavra que ainda não sei.
Devaneios, não me
compreendo, nunca me compreendi, faço mais vezes justamente aquilo que não
queria, assisto em direto a este filme de um outro de mim. Presumo ser quem
ainda não fui, ainda há dias sofri por ter mergulhado menos relativo a quem não
era, e as feridas aconteceram verdadeiras, quase mortais.
Devaneios, não me
compreendo neste ribeiro feito de uma palavra que ignoro. Guardada numa gaveta
de uma secretária antiga, perguntei agora mesmo por ela a esta folha vagamente
branca que por lá encontrei. É tão velha, de um papel amarelado e bafiento, e
agora imagino as palavras que ainda não lhe escrevi. Será ainda possível
escrever a palavra de que hoje é feito o meu ribeiro? Outro dia, outro fim,
avançamos inexoravelmente ao ritmo cadenciado do ribeiro opressor, tão mudo e
tão gigante. O Mago regressou, e com eles as suas sábias palavras:
- “Há nisto um mistério
que me desvirtua e me oprime.”
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